Na Espera Do Amanhã
Vou
dizer uma coisa banal: sem o mito do amanhã não existiríamos.
Digo
e assumo essa fundamental banalidade. Não fora o amanhã secaríamos à beira dos
caminhos. O amanhã é que fermenta o hoje, que fermenta o ontem.
Por
que migram as aves sobre os oceanos?
Por
que os peixes sobem cachoeiras procurando as nascentes do futuro?
Os
animais, aves e insetos ao redor, nos dão lição de aurora.
Ganhei
duas crisálidas de borboletas. Aprendi a ver nesses casulos as asas que se
desenharão em algum céu. Seguro nas mãos essas formas vivas disfarçadas de
vegetal. Imagino o futuro dessas células. Mas tal imaginação não é privilégio
só meu. No meu quarto, dependuradas num vaso de samambaia, duas crisálidas me
contemplam a mim. Elas sabem, mais que eu, a que horas duas estupendas
borboletas sairão do útero do tempo para esbaterem contra as vidraças do dia.
A
trepadeira no terraço, que avança dois-três contímetros cada jornada, seguindo
o fio de náilon do tempo, me ensina a direção das coisas. O vento sopra pelas
costas de suas folhas e ela navega verde na pilastra como uma caravela
reinventando seu concreto mar.
O
suicida é o que decretou a morte do amanhã.
O
idealista é o viciado que toma o amanhã nas veias, aspira-o, esfrega-o nos
olhos e gengivas.
No
entanto, dizemos: "está difícil", "a vida está dura",
"assim não é possível", "esse país não tem mais jeito", mas
no dia seguinte, amarfanhados, caminhamos junto ao mar para saudar a aurora.
Sábia
é a natureza, nos dizem. Olhai os lírios do campo, eles passam a vida tecendo e
fiando a manhã. E o jardineiro que parece um perverso podador, tão-somente
antecipa a floração da vida com suas lâminas de dor.
Em
busca do amanhã as cobras perdem sua pele.
Penas
caem na muda da plumagem airosa dos airões.
Cães
ladram pressentindo o terremoto, que os homens sequer percebem. Os cães, quando
uivam para a Lua, estão à sua maneira saudando o cio das madrugadas.
Em
busca do amanhã uma nave passou por Marte e segue rumo a Urano.
Alguns
pré-videntes já estão legislando a constituição do amanhã. E se acabarem com o
amanhã aqui, ele continuará com outros seres menos ferozes em outras galáxias,
mais humanas, talvez.
É
assim que Penélope tecia e destecia seu amor nos fios da madrugada esperando
Ulisses atracar na enseada.
É
assim que Sísifo- o mais otimista dos deuses condenados- sempre rolava montanha
acima a pedra que sempre rolava montanha abaixo.
É
assim que Fênix- a fabulosa ave queimada nos desertos da Arábia- renascia das
próprias cinzas e cantava transfigurada.
Deus
é o renovado amanhã.
O
que fazem os amantes pelos bares e praias, junto às árvores de noturnas ruas e
nos leitos secretos, senão cumprir o ritual de crença no amanhã.
E
o ano mais uma vez termina. E estamos comendo e bebendo as horas que faltam e
ansiando por um novo dia. Também são assim os primitivos, quando celebram o
potlach. Vão destruindo os objetos, as memórias que ficaram para reinaugurarem
um ano novo.
Oh,
amanhã! Os que vão viver te saúdam.
AFFONSO ROMANO DE
SANT'ANNA
BELO HORIZONTE-MG.
1937
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