Dói-Me A Vida Aos Poucos
(Fernando
Pessoa, in 'Carta a Mário de Sá-Carneiro em 1915)
Estou num
daqueles dias em que nunca tive futuro. Há só um presente imóvel com um muro de
angústia em torno. A margem de lá do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de cá,
e é esta a razão intima de todo o meu sofrimento. Há barcos para muitos portos,
mas nenhum para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueça. Tudo isto
aconteceu há muito tempo, mas a minha mágoa é mais antiga.
Em dias da
alma como hoje eu sinto bem, em toda a consciência do meu corpo, que sou a
criança triste em quem a vida bateu. Puseram-me a um canto de onde se ouve
brincar. Sinto nas mãos o brinquedo partido que me deram por uma ironia de
lata. Hoje, dia catorze de Março, às nove horas e dez da noite, a minha vida
sabe a valer isto.
No jardim
que entrevejo pelas janelas caladas do meu sequestro, atiraram com todos os
balouços para cima dos ramos de onde pendem; estão enrolados muito alto, e
assim nem a ideia de mim fugido pode, na minha imaginação, ter balouços para
esquecer a hora.
Pouco mais
ou menos isto, mas sem estilo, é o meu estado de alma neste momento. Como à
veladora do «Marinheiro» ardem-me os olhos, de ter pensado em chorar. Dói-me a
vida aos poucos, a goles, por interstícios. Tudo isto está impresso em tipo
muito pequeno num livro com a brochura a descoser-se.
Se eu não
estivesse escrevendo a você, teria que lhe jurar que esta carta é sincera, e
que as cousas de nexo histérico que aí vão saíram espontâneas do que sinto. Mas
você sentirá bem que esta tragédia irrepresentável é de uma realidade de cabide
ou de chávena — cheia de aqui e de agora, e passando-se na minha alma como o
verde nas folhas.
Foi por
isto que o Príncipe não reinou. Esta frase é inteiramente absurda. Mas neste
momento sinto que as frases absurdas dão uma grande vontade de chorar. Pode ser
que se não deitar hoje esta carta no correio amanhã, relendo-a, me demore a
copiá-la à máquina, para inserir frases e esgares dela no «Livro do
Desassossego». Mas isso nada roubará à sinceridade com que a escrevo, nem à
dolorosa inevitabilidade com que a sinto.
FERNANDO PESSOA
PORTUGAL,
1888-1935
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