Pequenas Fatalidades
Outro dia
eu estava no chuveiro e assim que fechei a torneira escutei os três bips
indicativos de que a secretária eletrônica havia acabado de gravar uma
mensagem. Quando pude ouvi-la, as palavras eram incompreensíveis. Todas. Voltei
a fita várias vezes, aumentei o volume, colei o ouvido ao aparelho: nada. Os
ruídos e chiados da interferência só aumentaram. Fiz o contrário, não deu
certo. Era uma mensagem meio longa, a pessoa queria dizer alguma coisa. A idéia
de que alguém tentara entrar em contato comigo e uma circunstância qualquer o
impedira a princípio me irritou e aos poucos me inquietou. Quem? A voz atrás
dos ruídos eletrônicos era de homem, tom vagaroso. E se alguém estivesse
pedindo ajuda e eu falhava involuntariamente? E se fosse um convite para
trabalho nestes tempos bicudos? Alguém me deve dinheiro: quem sabe se dispunha
a pagar? Ou explicava, coitado, por que ainda não podia pagar? Quem sabe um
convite para falar no Canadá? Teria eu sido premiado em algum daqueles sorteios
de fim de ano? Mais impressionado ficava a cada tentativa de decifrar a
mensagem: a voz já não soava apenas vagarosa, pareceu-me que se arrastava. Meu
Deus: um suicida desistindo? Fechei porta e janela, isolei-me dos barulhos,
ouvi e reouvi. Julguei perceber algo como "Igor", e só. Fiz um
esforço de memória, não conhecia nenhum Igor.
Pequenas
fatalidades nos acontecem todos os dias e são parte da trama da própria vida.
Talvez sejam feitas do mesmo intrincado tecido das grandes fatalidades, aquelas
que nos encaminham para o avião que vai cair. Mas as pequenas nos permitem
sorrir. Quando você está com pressa, a fila de carros ao lado sempre anda mais
rápido. Se você muda de faixa, a outra é que anda. Você está sozinho em casa,
entra no banho e o telefone ou a campainha da porta tocam. Você acaba de encher
o tanque e no posto adiante a gasolina está bem mais barata. Você começa a dar
ré no carro e materializa-se um pedestre atrapalhado passando atrás. Um dia
desses fui ao oftalmologista e dilataram-me as pupilas. Eu havia esquecido os
óculos escuros em casa e fatalmente o dia resultou claríssimo, sol cruel,
prédios e muros de um branco alucinado, tudo feria os olhos.
A idéia de
uma engrenagem movendo todas essas coisas, as pequenas e as grandes, tem
alimentado ficções e reflexões séculos afora. "O que tem de ser tem muita
força", resumiu Clarice Lispector. Um escritor angustiado como o checo
Franz Kafka construiu contos inquietantes partindo de pequenos acasos. Fatalidades
formam exércitos de pessimistas e de otimistas.
Entre os
primeiros, ganharam espaço os aforistas da lei de Murphy, aquela cuja primeira
máxima é "se alguma coisa pode dar errado, ela vai dar errado". A lei
foi sintetizada por um engenheiro aeronáutico que procurava eliminar todas as
possibilidades mecânicas de acidente de vôo. Ela fez sucesso, ganhou frasistas,
até sentimentais: "Se você encontra a garota de seus sonhos, ela já
encontrou o garoto dos sonhos dela". E humoristas: "Se alguma coisa
que podia dar errado parece que está dando certo, é óbvio que você cometeu
algum engano". Ou: "Não é possível criar alguma coisa à prova de
trapalhões, porque os trapalhões são criativos".
Dois dias
depois do telefonema, eu ia subindo a rua onde moro e encontrei um rosto
ligeiramente conhecido:
– Oi! Eu
sou o Igor.
Luz!
– Deixei
uma mensagem na secretária do senhor.
Era o rapaz
de uma agência de turismo que estava me procurando para devolver um cheque
preenchido incorretamente.
IVAN ÂNGELO
BARBACENA-MG = 1936
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