Black
Leandrinho,
o moço mais elegante e mais peralta do bairro de São Cristóvão, freqüentava a
casa do senhor Martins, que era casado com a moça mais bonita da rua do
Pau-Ferro.
Mas, por uma singularidade notável, tão
notável que a vizinhança logo notou, Leandrinho só ia à casa do senhor Martins
quando o senhor Martins não estava em casa.
Esperava que ele saísse e tomasse o bonde
que o transportava à cidade, quase à porta da sua repartição; entrava no
corredor com a petulância do guerreiro em terreno conquistado, e dona Candinha
(assim se chamava a moça mais bonita da rua do Pau-Ferro) introduzia-o na sala
de visitas, e de lá passavam ambos para a alcova, onde os esperava o tálamo
aviltado pelos seus amores ignóbeis.
A ventura de Leandrinho tinha um único
senão: havia na casa um cãozinho de raça, um bull-terrier, chamado
Black, que latia desesperadamente sempre que farejava a presença daquele
estranho.
Dir-se-ia que o inteligente animal
compreendia tudo e daquele modo exprimia a indignação que tamanha patifaria lhe
causava.
Entretanto, o inconveniente foi remediado. A
poder de carícias e pão-de-ló, a pouco e pouco logrou o afortunado Leandrinho
captar a simpatia de Black, e este, afinal, vinha aos pulos recebê-lo à porta
da rua, e acompanhava-o no corredor, saltado-lhe às pernas, lambendo-lhe as
mãos, corcoveando, arfando, sacudindo a cauda irrequieta e curva.
As mulheres viciosas e apaixonadas
comprazem-se na aproximação do perigo; por isso, dona Candinha desejava
ardentemente que Leandrinho travasse relações de amizade com o senhor Martins.
Tudo se combinou, e uma bela noite os dois
amantes se encontraram, como por acaso, num sarau do Clube Familiar da Cancela.
Depois de dançar com ele uma valsa e duas polcas, ela teve o desplante de
apresentá-lo ao marido.
Sucedeu o que invariavelmente sucede. A
manifestação de simpatia do senhor Martins não se demorou tanto como a Black:
foi fulminante.
Os maridos são por via de regra, menos
desconfiados que os bull-terrier.
O pobre homem nunca tivera diante de si
cavalheiro tão simpático, tão bem educado, tão insinuante. Ao terminar o sarau,
pareciam dois velhos amigos. À saída do clube, Leandrinho deu o braço a dona
Candinha, e, como, “também morava para aqueles lados”, acompanhou o casal até a
rua do Pau-Ferro.
Separam-se à porta da casa. O marido
insistiu muito para que o outro aparecesse. Teria o maior prazer em receber a
sua visita. Jantavam ás cinco. Aos domingos um pouco mais cedo, pois nesses
dias a cozinheira ia passear. - Hei de aparecer, prometeu Leandrinho.
- Olhe, venha quarta-feira, disse o senhor
Martins. Minha mulher faz anos nesse dia. Mata-se um peru e há mais alguns
amigos à mesa, poucos, muito poucos, e de nenhuma cerimônia. Venha. Dar-nos-á
muito prazer.
- Não faltarei, protestou Leandrinho. E
despediu-se.
- É muito simpático, observou o senhor
Martins metendo a chave no trinco.
- É, murmurou secamente dona Candinha.
Black, que os farejara, esperava-os lá
dentro, no corredor, grunhindo, arranhando a porta, corcoveando, arfando,
sacudindo a cauda irrequieta e curva.
Na quarta feira aprazada Leandrinho
embonecou-se todo e foi à casa do senhor Martins., levando consigo um soberbo
ramo de violetas.
O dono da casa, que estava na sala de
visitas com alguns amigos, encaminhou-se para ele de braços abertos, e
dispunha-se a apresentá-lo às pessoas presentes, quando Black veio a correr lá
de dentro, e começou a fazer muitas festas ao recém chegado, saltando-lhe às
pernas, lambendo-lhe as mãos, corcoveando, arfando, sacudindo a cauda
irrequieta e curva.
O senhor Martins, que conhecia o cão e
sabia-o incapaz de tanta familiaridade com pessoas estranhas, teve uma idéia
sinistra, e como os dois amantes enfiassem, a situação ficou para ele
perfeitamente esclarecida.
Não se descreve o escândalo produzido pela
inocente indiscrição de Black. Basta dizer que, a despeito da intervenção dos
parentes e amigos ali reunidos, dona Candinha e Leandrinho foram postos na rua
a pontapés valentemente aplicados.
O senhor Martins, que não tinha filhos, a
princípio sofreu muito, mas afinal habituou-se à solidão.
Nem era esta assim tão grande, pois todas as
vezes que ele entrava em casa, vinha recebê-lo o seu bom amigo, o indiscreto
Black saltando-lhe às pernas, lambendo-lhe as mãos, corcoveando, arfando,
sacudindo a cauda irrequieta e curva.
ARTUR
AZEVEDO
SÃO LUÍS-MA
= 1855 / 1908
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