domingo, 19 de outubro de 2014

CONTO = Artur Azevedo



Black

 Leandrinho, o moço mais elegante e mais peralta do bairro de São Cristóvão, freqüentava a casa do senhor Martins, que era casado com a moça mais bonita da rua do Pau-Ferro.
Mas, por uma singularidade notável, tão notável que a vizinhança logo notou, Leandrinho só ia à casa do senhor Martins quando o senhor Martins não estava em casa.
Esperava que ele saísse e tomasse o bonde que o transportava à cidade, quase à porta da sua repartição; entrava no corredor com a petulância do guerreiro em terreno conquistado, e dona Candinha (assim se chamava a moça mais bonita da rua do Pau-Ferro) introduzia-o na sala de visitas, e de lá passavam ambos para a alcova, onde os esperava o tálamo aviltado pelos seus amores ignóbeis.
A ventura de Leandrinho tinha um único senão: havia na casa um cãozinho de raça, um bull-terrier, chamado Black, que latia desesperadamente sempre que farejava a presença daquele estranho.
Dir-se-ia que o inteligente animal compreendia tudo e daquele modo exprimia a indignação que tamanha patifaria lhe causava.
Entretanto, o inconveniente foi remediado. A poder de carícias e pão-de-ló, a pouco e pouco logrou o afortunado Leandrinho captar a simpatia de Black, e este, afinal, vinha aos pulos recebê-lo à porta da rua, e acompanhava-o no corredor, saltado-lhe às pernas, lambendo-lhe as mãos, corcoveando, arfando, sacudindo a cauda irrequieta e curva.
As mulheres viciosas e apaixonadas comprazem-se na aproximação do perigo; por isso, dona Candinha desejava ardentemente que Leandrinho travasse relações de amizade com o senhor Martins.
Tudo se combinou, e uma bela noite os dois amantes se encontraram, como por acaso, num sarau do Clube Familiar da Cancela. Depois de dançar com ele uma valsa e duas polcas, ela teve o desplante de apresentá-lo ao marido.
Sucedeu o que invariavelmente sucede. A manifestação de simpatia do senhor Martins não se demorou tanto como a Black: foi fulminante.
Os maridos são por via de regra, menos desconfiados que os bull-terrier.
O pobre homem nunca tivera diante de si cavalheiro tão simpático, tão bem educado, tão insinuante. Ao terminar o sarau, pareciam dois velhos amigos. À saída do clube, Leandrinho deu o braço a dona Candinha, e, como, “também morava para aqueles lados”, acompanhou o casal até a rua do Pau-Ferro.
Separam-se à porta da casa. O marido insistiu muito para que o outro aparecesse. Teria o maior prazer em receber a sua visita. Jantavam ás cinco. Aos domingos um pouco mais cedo, pois nesses dias a cozinheira ia passear. - Hei de aparecer, prometeu Leandrinho.
- Olhe, venha quarta-feira, disse o senhor Martins. Minha mulher faz anos nesse dia. Mata-se um peru e há mais alguns amigos à mesa, poucos, muito poucos, e de nenhuma cerimônia. Venha. Dar-nos-á muito prazer.
- Não faltarei, protestou Leandrinho. E despediu-se.
- É muito simpático, observou o senhor Martins metendo a chave no trinco.
- É, murmurou secamente dona Candinha.
Black, que os farejara, esperava-os lá dentro, no corredor, grunhindo, arranhando a porta, corcoveando, arfando, sacudindo a cauda irrequieta e curva.
Na quarta feira aprazada Leandrinho embonecou-se todo e foi à casa do senhor Martins., levando consigo um soberbo ramo de violetas.
O dono da casa, que estava na sala de visitas com alguns amigos, encaminhou-se para ele de braços abertos, e dispunha-se a apresentá-lo às pessoas presentes, quando Black veio a correr lá de dentro, e começou a fazer muitas festas ao recém chegado, saltando-lhe às pernas, lambendo-lhe as mãos, corcoveando, arfando, sacudindo a cauda irrequieta e curva.
O senhor Martins, que conhecia o cão e sabia-o incapaz de tanta familiaridade com pessoas estranhas, teve uma idéia sinistra, e como os dois amantes enfiassem, a situação ficou para ele perfeitamente esclarecida.
Não se descreve o escândalo produzido pela inocente indiscrição de Black. Basta dizer que, a despeito da intervenção dos parentes e amigos ali reunidos, dona Candinha e Leandrinho foram postos na rua a pontapés valentemente aplicados.
O senhor Martins, que não tinha filhos, a princípio sofreu muito, mas afinal habituou-se à solidão.
Nem era esta assim tão grande, pois todas as vezes que ele entrava em casa, vinha recebê-lo o seu bom amigo, o indiscreto Black saltando-lhe às pernas, lambendo-lhe as mãos, corcoveando, arfando, sacudindo a cauda irrequieta e curva.
ARTUR AZEVEDO
SÃO LUÍS-MA  =  1855 / 1908

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