segunda-feira, 27 de outubro de 2014
CONTO = Artur Azevedo
O Cuco
Não havia meio de conseguir que o Roberto ficasse
uma noite em casa, fazendo companhia à senhora: havia de sair por força depois
de jantar, sozinho, e só voltava às dez, às onze horas, e mesmo algumas vezes
depois da meia-noite.
A senhora, que era uma santa, como todas as
mulheres de maridos notívagos, não se lastimava, não pedia ao Roberto que a
levasse consigo, não lhe perguntava, sequer, por onde tinha andado, quando o
via chegar um pouco mais tarde, o que raras vezes acontecia, porque em regra,
quando o cuco da sala de jantar dava dez horas, já ela, coitadinha!, estava
ferrada no sono.
* * *
O cuco da sala de jantar era um dos mais curiosos
que ficaram no Rio de Janeiro, do tempo em que foram moda: pertencera à avó de
Roberto, e este por dinheiro nenhum se desfaria de tão preciosa relíquia de
família, que era ao mesmo tempo saudosa recordação da infância.
As horas eram dadas por um pássaro mecânico. Saía
este da sua gaiola, abria o bico e punha-se a cantar lentamente: - "Cuco,
cuco, cuco..." O Roberto, em criança, imitava-o a ponto de enganar as
pessoas de casa.
* * *
Uma noite foi o nosso herói ao Cassino Nacional, e
deixou-se tentar por um amigo, que o convidou para cear com ele e duas chanteuses, uma
gommeuse e outra excentrique.
Depois da ceia, o amigo partiu com uma delas para
Citera, vulgo Copacabana, e o Roberto foi obrigado a acompanhar a outra a uma
pensão da Praia do Russel.
Quando ele deu por si, eram quase quatro horas da
madrugada! Oh, diabo!, a essa hora nunca entrara no lar doméstico!
Meteu-se num tílburi, que lhe apareceu
providencialmente, e voou para casa. Abriu a porta com toda a cautela e antes
de subir a escada, tirou as botinas, para não fazer bulha.
O seu quarto - seu e de sua esposa - era contíguo à
sala de jantar tornava-se preciso atravessar esta para lá entrar.
Ele atravessou, mas, como estivesse no escuro,
esbarrou numa cadeira, que caiu com estrondo.
Logo ouviu o Roberto a senhora remexer-se na cama e
disse consigo:
- Sebo! lá acordei minha mulher!
Ela perguntou:
- És tu, Roberto?
- Sim, sou eu, sinhazinha.
E o marido acrescentou para si:
- Felizmente não sabe que horas são.
Mas, nisto, o cuco saiu da gaiola, e começou a
cantar lentamente: "Cuco... cuco... cuco... cuco..."
- Estou perdido! - pensou o Roberto, mas uma idéia
luminosa lhe atravessou de repente o cérebro, e quando o pássaro cantou pela
quarta vez e voltou para a gaiola, ele continuou: "Cuco... cuco...
cuco..." até completar onze cucos.
O próprio Roberto não sabia que ainda imitasse o
pássaro com tanta perfeição.
- Onze horas - disse ele depois do décimo primeiro
cuco -. Julguei que fosse mais cedo!
E começou a despir-se.
A santa senhora voltou-se para o outro lado e
adormeceu de novo. Não deu pela coisa.
ARTUR AZEVEDO
SÃO LUÍS-MA = 1855-1908
CRÔNICA = Artur de Carvalho
Agora deu de todo mundo
reclamar que o mundo está cada vez mais competitivo. Que nossas crianças não
arrumam mais nem tempo para brincar, porque os pais colocam as coitadinhas em
aulas de inglês, aulas de natação, aulas de computação, aulas de balé, tudo
para que elas se tornem adultos mais competitivos. E que isso é que está
causando todos esses males desse nosso novo século como ansiedades,
frustrações, depressão e tudo o mais.
Oras. Que eu saiba, o mundo
sempre foi um lugar competitivo. E não é só com os seres humanos não. Para todo
lado que você olha, tem competição. Veja aí o mundo dos animais. Tem até aquele
ditado, talvez você conheça. Ele fala mais ou menos assim:
“Toda manhã, na África, uma
gazela acorda. Ela sabe que deverá correr mais rápido do que o leão, ou
morrerá.Toda manhã, na África, um leão acorda. Ele sabe que deverá correr mais
rápido do que a gazela, ou morrerá de fome. Na África, quando o sol surgir no
horizonte, não importa se você é leão ou gazela: o melhor que você tem a fazer
é começar a correr…”
E que eu saiba, nem leão, nem
gazela, sofrem de males como transtorno bipolar, enxaqueca ou insônia. Eles
apenas vão tocando a vida, correndo quando precisa e descansando quando dá. E
no planeta todo, isso acontece há milhares de anos. Talvez milhões.
Tudo bem que o ser humano tem a
incrível capacidade de elevar uma coisa natural a um grau de saturação que
acaba mesmo causando algum problema. Hoje em dia, já existe escola de inglês
para crianças de 2 anos. Dois anos, puxa vida! Com dois anos, uma criança não
sabe nem fazer xixi no banheiro direito, caramba, vai querer enfiar mais uma
língua na cabeça dela?
Mas o caso mais doentio de
competitividade exacerbada que eu vi nos últimos tempos foi quando eu passei
internado uns dias no HB, em Rio Preto. No quarto em que fiquei, só tinha
paciente com a mesma doença, e todos passavam pelo mesmo tratamento. A gente
tinha que tomar muito diurético, porque nosso corpo não estava conseguindo
eliminar os líquidos necessários. Então, de quinze em quinze minutos, a gente
fazia xixi numa espécie de urinol, e logo depois a enfermeira vinha medir para
ver se estávamos melhorando. O engraçado é que tinha lá um senhor meio calvo
que, logo depois que a enfermeira saía, sempre perguntava quanto é que a gente
tinha feito de xixi. Ante a nossa resposta, ele sempre fechava a mão, num gesto
de vitória, e falava:
- Ganhei de novo! Por 50 ml!
Aí
ele se virava para a parede, puxava a coberta. E dormia feliz.
CAMPINAS-SP = 1962- 2012
EDUARDO GALEANO
O Livro Dos Abraços
“Os
banqueiros da grande bancaria do mundo, que praticam o terrorismo do dinheiro,
podem mais que os reis e os marechais e mais que o próprio Papa de Roma. Eles
jamais sujam as mãos. Não matam ninguém: se limitam a aplaudir o espetáculo.
Seus
funcionários, os tecnocratas internacionais, mandam em nossos países: eles não
são presidentes, nem ministros, nem foram eleitos em nenhuma eleição, mas
decidem o nível dos salários e do gasto público, os investimentos e
desinvestimentos, os preços, os impostos, os lucros, os subsídios, a hora do
nascer do sol e a frequência das chuvas.
Não
cuidam, em troca, dos cárceres, nem das câmaras de tormento, nem dos campos de
concentração, nem dos centros de extermínio, embora nesses lugares ocorram as
inevitáveis consequências de seus atos.
Os
tecnocratas reivindicam o privilégio da irresponsabilidade:
—
Somos neutros — dizem”.
EDUARDO GALEANO
URUGUAI,
1940
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