sábado, 13 de setembro de 2014

CRÔNICA = Nelson Rodrigues



Só Os Profetas Enxergam O Óbvio

Amigos, num dia inspirado, escrevi uma frase que ia sofrer todas as variações possíveis. Eis a frase: — “Só os profetas enxergam o óbvio.” A princípio, era uma frase engenhosa. Mas não imaginei, jamais, que corresse todo o território nacional.
Vocês entendem? No dia seguinte, eu saí de casa, bem cedo, tão cedo que esbarrei, quase tropecei no leiteiro. Vejam o sucesso fulminante de uma frase bem-nascida. Assim que me viu, o homem ergueu o braço e declamou: — “Só os profetas enxergam o óbvio.” Recuei dois passos e avancei outro tanto. Perguntei: — “Onde é que você leu isso?” Ele puxou o recorte do bolso. — “Li na sua crônica, na sua coluna, ora, pois pois!” Estendi-lhe a mão, o leiteiro a dele, e assim nos despedimos. Isso foi há uns cinco anos (ou dez?). O fato é que, durante todo o dia da primeira audição (e era uma primeira audição), eu vivi às custas da frase. A alma encantadora das esquinas e dos botecos amou a frase.
E, por um momento, pensei que eu podia viver de uma frase se eu a tratasse com o necessário carinho. De um dia para outro tornei-me o poeta do óbvio. Impressionado, criei, em seguida, o óbvio ululante. Repercussão instantânea.
Não quero me gabar, mas tenho comigo a ideia de que tudo o que fiz de original, de interessante, são as variações do óbvio. Mas diz a minha vizinha, gorda e patusca: — “A gente vive aprendendo.” Quanto a mim, aprendi  mais esta: — apesar de minha frenética promoção, o óbvio, simples ou ululante, continua invisível.
As pessoas enxergam tudo, menos o óbvio. Vocês querem, sem dúvida, um exemplo concreto. Vamos lá. Exemplo no 1: a nossa crônica esportiva. Vamos ressalvar alguns colegas que são os cegos do óbvio. Claro que nem todos os cronistas têm essa cegueira. Mas a maioria se comporta como os cretinos fundamentais. Ora, não há óbvio mais espetacular que este: — “O futebol europeu não chega aos pés do nosso.” É só fazer o retrospecto de ambos os esportes. Se resultado vale alguma coisa, a estatística mostra e demonstra o nosso futebol como o maior do mundo. Por exemplo: — nunca houve na Terra um futebol como o brasileiro. Somos tricampeões do mundo e não basta? Devia bastar. Mas há os que soluçam: — “Não somos mais os melhores, não somos mais os reis.” Eis aí, como diria Victor Hugo: — um soluço imortal. Dirão vocês que Victor Hugo não é infalível. Mas se ele não é infalível, o óbvio o é. E, além disso, os poetas existem para isso mesmo, ou seja: para descobrir um soluço eterno. Se o óbvio está certo, há soluços piores.

(O Globo, 17-8-1977)

NELSON RODRIGUES
RECIFE-PE, 1912-1980

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