Só Os Profetas Enxergam O Óbvio
Amigos, num dia inspirado, escrevi uma frase que ia sofrer
todas as variações possíveis. Eis a frase: — “Só os profetas enxergam o óbvio.”
A princípio, era uma frase engenhosa. Mas não imaginei, jamais, que corresse
todo o território nacional.
Vocês entendem? No dia seguinte, eu saí de casa, bem cedo,
tão cedo que esbarrei, quase tropecei no leiteiro. Vejam o sucesso fulminante
de uma frase bem-nascida. Assim que me viu, o homem ergueu o braço e declamou:
— “Só os profetas enxergam o óbvio.” Recuei dois passos e avancei outro tanto.
Perguntei: — “Onde é que você leu isso?” Ele puxou o recorte do bolso. — “Li na
sua crônica, na sua coluna, ora, pois pois!” Estendi-lhe a mão, o leiteiro a
dele, e assim nos despedimos. Isso foi há uns cinco anos (ou dez?). O fato é
que, durante todo o dia da primeira audição (e era uma primeira audição), eu
vivi às custas da frase. A alma encantadora das esquinas e dos botecos amou a
frase.
E, por um momento, pensei que eu podia viver de uma frase
se eu a tratasse com o necessário carinho. De um dia para outro tornei-me o
poeta do óbvio. Impressionado, criei, em seguida, o óbvio ululante. Repercussão
instantânea.
Não quero me gabar, mas tenho comigo a ideia de que tudo o
que fiz de original, de interessante, são as variações do óbvio. Mas diz a
minha vizinha, gorda e patusca: — “A gente vive aprendendo.” Quanto a mim,
aprendi mais esta: — apesar de minha
frenética promoção, o óbvio, simples ou ululante, continua invisível.
As pessoas enxergam tudo, menos o óbvio. Vocês querem, sem
dúvida, um exemplo concreto. Vamos lá. Exemplo no 1: a nossa crônica esportiva.
Vamos ressalvar alguns colegas que são os cegos do óbvio. Claro que nem todos
os cronistas têm essa cegueira. Mas a maioria se comporta como os cretinos
fundamentais. Ora, não há óbvio mais espetacular que este: — “O futebol europeu
não chega aos pés do nosso.” É só fazer o retrospecto de ambos os esportes. Se
resultado vale alguma coisa, a estatística mostra e demonstra o nosso futebol
como o maior do mundo. Por exemplo: — nunca houve na Terra um futebol como o
brasileiro. Somos tricampeões do mundo e não basta? Devia bastar. Mas há os que
soluçam: — “Não somos mais os melhores, não somos mais os reis.” Eis aí, como
diria Victor Hugo: — um soluço imortal. Dirão vocês que Victor Hugo não é
infalível. Mas se ele não é infalível, o óbvio o é. E, além disso, os poetas
existem para isso mesmo, ou seja: para descobrir um soluço eterno. Se o óbvio
está certo, há soluços piores.
(O Globo, 17-8-1977)
NELSON RODRIGUES
RECIFE-PE, 1912-1980
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