FERNANDO SABINO
BELO HORIZONTE-MG = 1923-2004
Como Nasce Uma História
Quando cheguei ao edifício, tomei o elevador que serve do
primeiro ao décimo quarto andar.Era pelo menos o que dizia a tabuleta no alto
da porta. — Sétimo — pedi. Eu estava sendo aguardado no auditório, onde
faria uma palestra. Eram as secretárias daquela companhia que celebravam o Dia
da Secretária e que, desvanecedoramente para mim, haviam-me incluído entre as
celebrações. A porta se fechou e começamos a subir. Minha atenção se fixou num
aviso que dizia: É expressamente proibido os funcionários, no ato da subida,
utilizarem os elevadores para descerem. Desde o meu tempo de ginásio sei que se
trata de problema complicado, este do infinito pessoal. Prevaleciam
então duas regras mestras que deveriam ser rigorosamente
obedecidas, quando se tratava do uso deste traiçoeiro tempo de verbo. O diabo é
que as duas não se complementavam: ao contrário, em certos casos francamente se
contradiziam. Uma afirmava que o sujeito, sendo o mesmo, impedia que o verbo se
flexionasse. Da outra infelizmente já não me lembrava. Bastava a primeira
para me assegurar de que, no caso, havia um clamoroso erro de
concordância. Mas não foi o emprego pouco castiço do infinito pessoal que me
intrigou no tal aviso: foi estar ele concebido de maneira chocante aos
delicados ouvidos de um escritor que se preza. Ah, aquela cozinheira a que se
refere García Márquez, que tinha redação própria! Quantas vezes clamei, como
ele, por alguém que me pudesse valer nos momentos de aperto, qual seja o de redigir
um telegrama de felicitações. Ou um simples aviso como este: É expressamente
proibido os funcionários... Eu já começaria por tropeçar na regência,
teria de consultar o dicionário de verbos e regimes: não seria aos
funcionários? E nem chegaria a contestar a validade de uma proibição cujo aviso
se localizava dentro do elevador e não do lado de fora: só seria lido pelos
funcionários que já houvessem entrado e portanto incorrido na proibição de
pretender descer quando o elevador estivesse subindo. Contestaria antes a
maneira ambígua pela qual isto era expresso: . . . no ato da subida,
utilizarem os elevadores para descerem. Qualquer um, não sendo
irremediavelmente burro, e ntenderia o que se pretende dizer neste aviso. Pois
um tijolo de burrice me baixou na compreensão, fazendo com que eu
ficasse revirando a frase na cabeça: descerem, no ato da subida? Que quer dizer
isto? E buscava uma forma simples e correta de formular a proibição: É
proibido subir para depois descer. É proibido subir no elevador com intenção de
descer. É proibido ficar no elevador com intenção de descer, quando ele estiver
subindo. Descer quando estiver subindo! Que coisa difícil, meu Deus.
Quem quiser que experimente, para ver só. Tem de ser bem
simples: Se quiser descer, não tome o elevador que esteja subindo. Mais simples
ainda: Se quiser descer, só tome o elevador que estiver descendo. De tanta
simplicidade, atingi a síntese perfeita do que Nelson Rodrigues chamava de
óbvio ululante, ou seja, a enunciação de algo que não quer dizer absolutamente
nada: Se quiser descer, não suba. Tinha de me reconhecer derrotado, o que
era vergonhoso para um escritor. Foi quando me dei conta de que o elevador
havia passado do sétimo andar, a que me destinava, já estávamos pelas alturas
do décimo terceiro. — Pedi o sétimo, o senhor não parou!
— reclamei.O ascensorista protestou: — Fiquei parado um tempão, o senhor não desceu.
— reclamei.O ascensorista protestou: — Fiquei parado um tempão, o senhor não desceu.
Os outros passageiros riram: — Ele parou sim. Você
estava aí distraído. — Falei três vezes, sétimo! sétimo! sétimo!, e o
senhor nem se mexeu — reafirmou o ascensorista. — Estava lendo isto aqui —
respondi idiotamente, apontando o aviso. Ele abriu a porta do décimo
quarto, os demais passageiros saíram. — Convém o senhor sair também e
descer noutro elevador. A não ser que queira ir até o último andar e na volta
descer parando até o sétimo. — Não é proibido descer no que está
subindo? Ele riu: — Então desce num que está descendo. — Este vai
subir mais? — protestei: — Lá embaixo está escrito que este elev
ador vem só até o décimo quarto. — Para subir. Para descer, sobe até o último. — Para descer sobe?Eu me sentia um completo mentecapto. Saltei ali mesmo, como ele sugeria. Seguindo seu conselho, pressionei o botão, passando a aguardar um elevador que estivesse descendo. Que tardou, e muito. Quando finalmente chegou, só reparei que era o mesmo pela cara do ascensorista, recebendo-me a rir: — O senhor ainda está por aqui? E fomos descendo, com parada em andar por andar. Cheguei ao auditório com 15 minutosde atraso. Ao fim da palestra, as moças me fizeram perguntas, e uma delas quis saber como nascem as minhas histórias. Comecei a contar: — Quando cheguei ao edifício, tomei o elevador que serve do primeiro ao décimo quarto andar. Era pelo menos o que dizia a tabuleta no alto da porta.
ador vem só até o décimo quarto. — Para subir. Para descer, sobe até o último. — Para descer sobe?Eu me sentia um completo mentecapto. Saltei ali mesmo, como ele sugeria. Seguindo seu conselho, pressionei o botão, passando a aguardar um elevador que estivesse descendo. Que tardou, e muito. Quando finalmente chegou, só reparei que era o mesmo pela cara do ascensorista, recebendo-me a rir: — O senhor ainda está por aqui? E fomos descendo, com parada em andar por andar. Cheguei ao auditório com 15 minutosde atraso. Ao fim da palestra, as moças me fizeram perguntas, e uma delas quis saber como nascem as minhas histórias. Comecei a contar: — Quando cheguei ao edifício, tomei o elevador que serve do primeiro ao décimo quarto andar. Era pelo menos o que dizia a tabuleta no alto da porta.
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