sábado, 22 de março de 2014

FRANZ KAFKA


Ulisses



Prova de que recursos insuficientes, e até pueris, podem servir à salvação:

Para resguardar-se das Sereias, Ulisses tapou com cera os ouvidos e fez-se acorrentar ao mastro. O mesmo poderia ter feito, desde sempre, todo e qualquer viajante - salvo aqueles a quem as Sereias seduzissem de longe; mas todo mundo sabia que uma coisa dessas fora impossível evitar. O canto das Sereias atravessava tudo, e a paixão dos seduzidos era de romper mais do que correntes e mastros. Nisso não pensou Ulisses, embora certamente já tivesse ouvido falar; confiava inteiramente no punhado de cera e nas voltas de corrente, e ingenuamente satisfeito com o seu artifício lá se foi ao encontro das Sereias.

Só que as Sereias tinham um dom ainda mais terrível que o seu canto: o seu silêncio. Ainda que nunca tivesse acontecido, pode-se talvez imaginar que alguém conseguisse escapar-lhes ao canto; ao seu silêncio é óbvio que não. À sensação de tê-las alguém vencido apenas com as próprias forças e à conseqüente petulância, capaz de tudo levar de roldão, nada resistiria sobre a terra...

De fato, ao chegar Ulisses, não cantaram as fabulosas cantoras; fosse por reconhecerem que só com o silêncio poderiam derrotar semelhante adversário, fosse pelo olhar de bem-aventurança que iluminava a face de Ulisses (não pensava em nada além da cera e da corrente), deixaram de lado o canto. Mas Ulisses não lhes ouvia o silêncio, se assim se pode dizer: imaginava que cantassem e que apenas ele estivesse imune a ouvi-las. Via-lhes de relance os movimentos do colo, o respirar profundo, os olhos marejados, os lábios entreabertos... mas pensava que aquilo fizesse parte das árias que ao redor morriam-lhe inauditas. Logo porém tudo fugiu do seu olhar perdido na distância, as Sereias formalmente desapareceram ante a sua firmeza de propósito, e no momento mesmo em que as tinha mais perto de si ele não tomava conhecimento delas.

Elas, no entanto, mais belas do que nunca, inclinavam pescoço e viravam-se, deixando seus estranhos cabelos flutuarem soltos no vento e exercitando as garras despreocupadamente nas rochas. Já não queriam seduzir, mas tão-só captar o mais demoradamente possível o fulgor dos grandes olhos de Ulisses.

Fossem dotadas de consciência, as Sereias, nessa ocasião teriam sido aniquiladas. Subsistiram, todavia, mas escapou-lhes Ulisses.

A propósito, aliás, um apêndice foi anexado à lenda: Conta-se que Ulisses era tão astucioso, tão manhosa raposa, que nem a Deusa do Destino lograva penetrar-lhe o íntimo, e talvez (embora tal coisa não esteja ao alcance do entendimento humano) ele tivesse realmente percebido que as Sereias faziam silêncio e conservasse aquela aparência apenas como uma espécie de escudo contra elas e contra os Deuses.

REPÚBLICA TCHECA = 1883-1924

 

 

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