sábado, 1 de março de 2014

CRÔNICA = Mário Sette


Entrudo E Frevo


De começo não havia propriamente carnaval no Recife. Existia, apenas, entrudo. O brinquedo intenso e brutal de água, em combates a quartinhas, gamelas, bacias e barris. Todos se empenhavam nessas lutas - forros e escravos, por vezes misturados como se fossem de igual plano social. Um periódico crítico, da época, verberava essas misturas em que as "sinhazinhas", nas varandas, brincavam o entrudo com todo mundo, "até com as molecas". Pouco a pouco esse entrudo se estendia à goma, farinha do reino, açúcar e mesmo pó de carvão.

Os jornais dele só se ocupavam para fazer censuras. Conta Pereira da Costa que já em 1822 expedira-se uma portaria proibindo esses costumes, mas tão enraizados eles se achavam que o ato oficial foi letra morta, "para inglês ver", como se dizia nesse tempo. Ao contrário, o entrudo chegava ao auge, atingindo arrabaldes e povoações do interior, tingindo-se mesmo a água de várias cores para tornar os indivíduos que a recebessem de cabeça abaixo mais carnavalescos... Nem sempre, porém, as vitimas se conformavam com o banho, para sorrir com agrado ou sem ele; muitos reagiam e brotavam daí barulhos, conflitos, mortes.

Como um meio de atenuar um tanto a brutalidade do brinquedo nasceram as limas e limões de cheiro, fabricadas de cera e cheias de água perfumada. As famílias meses antes dos dias de Momo, preparavam essas limas e limões para uso próprio ou para mandar vendê-las nas ruas, em tabuleiros, pelos escravos.

A mascarada apareceu, no Recife, no meado do século XIX. Nos bailes apenas. Trajos vistosos ou cômicos, com cabeleiras e máscaras. A moda pegou depressa. Os teatros públicos se encheram de foliões e de curiosos. Tanto assim que os mascarados logo depois se afoitaram a sair à rua, em cortejos ou isolados, afrontando os preconceitos da época. Foram em seguida surgindo os cordões formados por elementos de classes trabalhadoras de que tomavam os nomes, como lenhadores, espanadores, caiadores, vassourinhas, ciscadores... Exibiram-se os maracatus, reminiscências dos cortejos africanos e os caboclinhos alusivos aos indígenas.
Mas, mesmo assim, o carnaval não merecia grande importância. Sente-se isso pelas folhas daqueles tempos. Em 1880, por exemplo, os três agitados dias de hoje, passavam sem que a imprensa falasse neles, ou, se falava, era para dar notícias ligeiras ou pejorativas deste padrão:

"O carnaval, com todo seu cortejo de folias, caricaturas e obscenidades ao som dos gonzos e dos tamborins. O primeiro dia a mascarada animada; segundo, mais fraco, terceiro, animadíssimo. lnteressantes pretas quitandeiras da Bahia, de saia e camisa; os negros fugidos e caranguejeiros; os carregadores de barril. Também não faltou o bumba-meu-boi, fandango e a cena do rei do Congo."

Outra notícia:

"Poucos máscaras ricos, ou de espírito. Troças de negros pelas ruas. Negros escravos vestidos de saias. Muitos maracatus. Nas varandas moças de faces afogueadas, cabelos em desalinho, desenvoltas, a atirarem laranjinhas para defronte, para os transeuntes, recebendo-as também, até de negros."

Nada mais do que esses períodos curtos, indiferentes, cortantes.

Folheando-se os jornais antigos nota-se que por volta de 1885 foi que o carnaval começou a interessar também o periodismo como um reflexo de mais amplitude do seu prestígio entre a população. Já se nomeavam comissões para enfeitar as ruas; já havia iluminação especial; já "os mancebos folgazões" se reuniam constituindo a sociedade sob título Sumidades carnavalescas. Surgiam os clubes Cavalheiros da Época e Trinta e Três que exibiam préstitos de alegorias e críticas "muito apreciáveis". Em 1893 saiu à rua o clube Os Filomomos, (criado entre funcionários da Alfândega e comerciantes em grosso do bairro do Recife), que foi a sociedade de maior destaque no Recife de então. Os bailes à fantasia do lnternacional Juventude, Nova Hamburgo, teatro Santo Antônio, davam sorte.

O brinquedo já evolvera do primitivo entrudo para as bisnagas, o pó de ouro, o papel picado. E, depois, o confeti. Civilizava-se. A mascarada aumentara e tinha mais gosto. Dominós, morcegos, diabinhos, pierrôs, cabeças-grandes. Vários deles em grupos com pequenas orquestras. Por sua vez, os cordões multiplicavam-se. Houve anos de se licenciarem para mais de cento e cinqüenta e a maioria se apresentava com luxo de trajos, estandartes, fanfarras.

O povo fazia tanta questão do seu carnaval que em 1895, no governo Babosa Lima, estando "as coisas meio pretas", com a cavalaria nas esquinas, a proibição de máscaras nas caras, os boatos de "bernardas", nem por isso os três dias decorreram desanimados.

Em 1901 fundou-se o Clube Caraduras. Constituiu uma novidade para o Recife pelos novos moldes emprestados à folia. Um mês antes do carnaval, o Caraduras, composto quase todo de oficiais do exército, realizava nas noites de sábados barulhentos zés-pereiras, levando numa carroça um palco onde, em pontos movimentados da cidade, dançavam uns arremedos de pastoris e cantavam cançonetas maliciosas. Era o teatrinho João-Minhoca. Não se falava noutra coisa. Quando o "palco" se deslocava de uma rua para outra, o povo ia atrás ansioso de novas "representações" e novas gargalhadas. Costumavam também os Caraduras, com grande pompa, efetuar o desembarque e o embarque do rei Momo, com seus filhos: o príncipe Confeti e a princesa Bisnaga.

Nunca mais o Carnaval no Recife perdeu o seu caráter de animação. Modificou-se, é verdade. A mascarada quase que desapareceu, nas ruas. Os cordões diminuíram de número. Em compensação, os bailes à fantasia revestiam-se de mais brilho e o "frevo" proporcionou maior vibração aos clubes. Porque, a princípio, a massa popular que acompanhava o Pás, Vassourinhas, Lenhadores, por exemplo, não dançava com o ardor de agora. Fazia o "passo", as suas dobradiças, tesouras, chans de barriguinha etc., com mais discreção. Hoje, é aquilo que se vê, contagiando até as famílias que rodam no corso em seus automóveis. O "frevo" passou a ser mesmo a nota típica do nosso carnaval.

Por sua vez o corso, outrora formado de alguns carros de passeio, puxados a cavalo, transformou-se no cortejo de dois ou três mil automóveis da atualidade. Desapareceram, porém, os cavalerianos que antigamente faziam correrias pelas ruas da cidade, exibindo o garbo e os animais. O brinquedo, por seu turno, requintou-se. Das gamelas e barris do começo do século XIX, filtrado pelas modificações de lima de cheiro, da bisnaga, do papel picado, do getoni, alcançou a delicadeza do lança-perfume e da serpentina.

Sem alterar o seu cunho próprio, antes procurando reviver detalhes antigos e que iam caindo no esquecimento, procura-se, no momento, dar maior realce e importância ao carnaval de Pernambuco, fazendo dele um motivo de atração turística, como o do Rio de Janeiro, que, por sinal, não possui o "sabor" do nosso. Poderá ser mais luxuoso, mais vasto, mais aristocrático. O do Recife, porém, é muito mais característico, mais vibrante, mais popular. A música de nossas marchas e de nossos maracatus não tem medo de um confronto com as canções e os sambas cariocas. O nosso "frevo", como o célebre reclamo de um locutor de rádio, é "único".

Este ano tenta-se uma inovação interessante: - os modelos de fantasias inspirados em estilizações de nossos frutos, de nossos produtos, nossas belezas naturais. A manga, o coqueiro, a jangada, o engenho, o algodão, são motivos para esses trajes carnavalescos, e felizes. Havemos de vê-los pelas ruas da cidade, no próximo carnaval, e de gostar deles, porque são bonitos e expressivos.

Num golpe de vista, resume-se deste modo o carnaval de Pernambuco: - dois desenhos simbolizariam a evolução - num, o gamenho que derrama uma quartinha d’água nos cabelos soltos da gamenha; noutro, um desportista de hoje que esguicha um lança-perfume na "ondulação permanente" da sua datilógrafa ou da sua cantora de rádio...
 

MÁRIO SETTE
RECIFE-PE  =  1886 = 1950

(Em Anuário do carnaval pernambucano. Recife, Federação Carnavalesca Pernambucana, 1938, p.35-40)

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