Entrudo E Frevo
De começo não havia propriamente carnaval no Recife. Existia, apenas,
entrudo. O brinquedo intenso e brutal de água, em combates a quartinhas,
gamelas, bacias e barris. Todos se empenhavam nessas lutas - forros e escravos,
por vezes misturados como se fossem de igual plano social. Um periódico
crítico, da época, verberava essas misturas em que as "sinhazinhas",
nas varandas, brincavam o entrudo com todo mundo, "até com as molecas".
Pouco a pouco esse entrudo se estendia à goma, farinha do reino, açúcar e mesmo
pó de carvão.
Os jornais dele só se ocupavam para fazer censuras. Conta Pereira da
Costa que já em 1822 expedira-se uma portaria proibindo esses costumes, mas tão
enraizados eles se achavam que o ato oficial foi letra morta, "para inglês
ver", como se dizia nesse tempo. Ao contrário, o entrudo chegava ao auge,
atingindo arrabaldes e povoações do interior, tingindo-se mesmo a água de
várias cores para tornar os indivíduos que a recebessem de cabeça abaixo mais
carnavalescos... Nem sempre, porém, as vitimas se conformavam com o banho, para
sorrir com agrado ou sem ele; muitos reagiam e brotavam daí barulhos,
conflitos, mortes.
Como um meio de atenuar um tanto a brutalidade do brinquedo nasceram as
limas e limões de cheiro, fabricadas de cera e cheias de água perfumada. As
famílias meses antes dos dias de Momo, preparavam essas limas e limões para uso
próprio ou para mandar vendê-las nas ruas, em tabuleiros, pelos escravos.
A mascarada apareceu, no Recife, no meado do século XIX. Nos bailes
apenas. Trajos vistosos ou cômicos, com cabeleiras e máscaras. A moda pegou
depressa. Os teatros públicos se encheram de foliões e de curiosos. Tanto assim
que os mascarados logo depois se afoitaram a sair à rua, em cortejos ou
isolados, afrontando os preconceitos da época. Foram em seguida surgindo os
cordões formados por elementos de classes trabalhadoras de que tomavam os
nomes, como lenhadores, espanadores, caiadores, vassourinhas, ciscadores...
Exibiram-se os maracatus, reminiscências dos cortejos africanos e os
caboclinhos alusivos aos indígenas.
Mas, mesmo assim, o carnaval não merecia grande importância. Sente-se isso pelas folhas daqueles tempos. Em 1880, por exemplo, os três agitados dias de hoje, passavam sem que a imprensa falasse neles, ou, se falava, era para dar notícias ligeiras ou pejorativas deste padrão:
Mas, mesmo assim, o carnaval não merecia grande importância. Sente-se isso pelas folhas daqueles tempos. Em 1880, por exemplo, os três agitados dias de hoje, passavam sem que a imprensa falasse neles, ou, se falava, era para dar notícias ligeiras ou pejorativas deste padrão:
"O carnaval, com todo seu cortejo de folias, caricaturas e
obscenidades ao som dos gonzos e dos tamborins. O primeiro dia a mascarada
animada; segundo, mais fraco, terceiro, animadíssimo. lnteressantes pretas
quitandeiras da Bahia, de saia e camisa; os negros fugidos e caranguejeiros; os
carregadores de barril. Também não faltou o bumba-meu-boi, fandango e a cena do
rei do Congo."
Outra notícia:
"Poucos máscaras ricos, ou de espírito. Troças de negros pelas
ruas. Negros escravos vestidos de saias. Muitos maracatus. Nas varandas moças
de faces afogueadas, cabelos em desalinho, desenvoltas, a atirarem laranjinhas
para defronte, para os transeuntes, recebendo-as também, até de negros."
Nada mais do que esses períodos curtos, indiferentes, cortantes.
Folheando-se os jornais antigos nota-se que por volta de 1885 foi que o
carnaval começou a interessar também o periodismo como um reflexo de mais
amplitude do seu prestígio entre a população. Já se nomeavam comissões para
enfeitar as ruas; já havia iluminação especial; já "os mancebos
folgazões" se reuniam constituindo a sociedade sob título Sumidades
carnavalescas. Surgiam os clubes Cavalheiros da Época e Trinta e Três que
exibiam préstitos de alegorias e críticas "muito apreciáveis". Em
1893 saiu à rua o clube Os Filomomos, (criado entre funcionários da Alfândega e
comerciantes em grosso do bairro do Recife), que foi a sociedade de maior
destaque no Recife de então. Os bailes à fantasia do lnternacional Juventude,
Nova Hamburgo, teatro Santo Antônio, davam sorte.
O brinquedo já evolvera do primitivo entrudo para as bisnagas, o pó de
ouro, o papel picado. E, depois, o confeti. Civilizava-se. A mascarada
aumentara e tinha mais gosto. Dominós, morcegos, diabinhos, pierrôs,
cabeças-grandes. Vários deles em grupos com pequenas orquestras. Por sua vez,
os cordões multiplicavam-se. Houve anos de se licenciarem para mais de cento e
cinqüenta e a maioria se apresentava com luxo de trajos, estandartes,
fanfarras.
O povo fazia tanta questão do seu carnaval que em 1895, no governo
Babosa Lima, estando "as coisas meio pretas", com a cavalaria nas
esquinas, a proibição de máscaras nas caras, os boatos de
"bernardas", nem por isso os três dias decorreram desanimados.
Em 1901 fundou-se o Clube Caraduras. Constituiu uma novidade para o
Recife pelos novos moldes emprestados à folia. Um mês antes do carnaval, o
Caraduras, composto quase todo de oficiais do exército, realizava nas noites de
sábados barulhentos zés-pereiras, levando numa carroça um palco onde, em pontos
movimentados da cidade, dançavam uns arremedos de pastoris e cantavam
cançonetas maliciosas. Era o teatrinho João-Minhoca. Não se falava noutra
coisa. Quando o "palco" se deslocava de uma rua para outra, o povo ia
atrás ansioso de novas "representações" e novas gargalhadas.
Costumavam também os Caraduras, com grande pompa, efetuar o desembarque e o
embarque do rei Momo, com seus filhos: o príncipe Confeti e a princesa Bisnaga.
Nunca mais o Carnaval no Recife perdeu o seu caráter de animação.
Modificou-se, é verdade. A mascarada quase que desapareceu, nas ruas. Os
cordões diminuíram de número. Em compensação, os bailes à fantasia revestiam-se
de mais brilho e o "frevo" proporcionou maior vibração aos clubes.
Porque, a princípio, a massa popular que acompanhava o Pás, Vassourinhas,
Lenhadores, por exemplo, não dançava com o ardor de agora. Fazia o
"passo", as suas dobradiças, tesouras, chans de barriguinha etc., com
mais discreção. Hoje, é aquilo que se vê, contagiando até as famílias que rodam
no corso em seus automóveis. O "frevo" passou a ser mesmo a nota
típica do nosso carnaval.
Por sua vez o corso, outrora formado de alguns carros de passeio,
puxados a cavalo, transformou-se no cortejo de dois ou três mil automóveis da
atualidade. Desapareceram, porém, os cavalerianos que antigamente faziam
correrias pelas ruas da cidade, exibindo o garbo e os animais. O brinquedo, por
seu turno, requintou-se. Das gamelas e barris do começo do século XIX, filtrado
pelas modificações de lima de cheiro, da bisnaga, do papel picado, do getoni,
alcançou a delicadeza do lança-perfume e da serpentina.
Sem alterar o seu cunho próprio, antes procurando reviver detalhes
antigos e que iam caindo no esquecimento, procura-se, no momento, dar maior
realce e importância ao carnaval de Pernambuco, fazendo dele um motivo de
atração turística, como o do Rio de Janeiro, que, por sinal, não possui o
"sabor" do nosso. Poderá ser mais luxuoso, mais vasto, mais aristocrático.
O do Recife, porém, é muito mais característico, mais vibrante, mais popular. A
música de nossas marchas e de nossos maracatus não tem medo de um confronto com
as canções e os sambas cariocas. O nosso "frevo", como o célebre
reclamo de um locutor de rádio, é "único".
Este ano tenta-se uma inovação interessante: - os modelos de fantasias
inspirados em estilizações de nossos frutos, de nossos produtos, nossas belezas
naturais. A manga, o coqueiro, a jangada, o engenho, o algodão, são motivos para
esses trajes carnavalescos, e felizes. Havemos de vê-los pelas ruas da cidade,
no próximo carnaval, e de gostar deles, porque são bonitos e expressivos.
Num golpe de vista, resume-se deste modo o carnaval de Pernambuco: -
dois desenhos simbolizariam a evolução - num, o gamenho que derrama uma
quartinha d’água nos cabelos soltos da gamenha; noutro, um desportista de hoje
que esguicha um lança-perfume na "ondulação permanente" da sua
datilógrafa ou da sua cantora de rádio...
MÁRIO SETTE
RECIFE-PE = 1886
= 1950
(Em Anuário do
carnaval pernambucano. Recife, Federação Carnavalesca
Pernambucana, 1938, p.35-40)
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