A orquestra com a sua toada
conhecida aproximava-se. Ouvia-se já distintamente a cantiga dos foliões:
O morcego bateu asas
Mas não pode avoá... Quem não tem prazer na vida Não diverte o carnavá
Era o primeiro bando de
mascarados a passar no domingo lá por nossa casa.
Eu, que os esperava desde o
amanhecer, ficava feito barata tonta. E o rebuliço na rua tomava ares de
loucura epidêmica. Abriam-se de golpe as janelas de toda a vizinhança.
Corriam ao portão os modestos moradores de um cortiço de defronte. A meninada
gritava. Enchiam-se as esquinas de gente à fresca.
- São os morcegos!
- Venham ver depressa!
- Corra Melinha!
D. Neném... Chica!... Vocês
perdem... Eh! vêm os cabeças-grandes!
Acorriam todos. Patrões e
criadas. Brancos e negros. Até minha vó, eternamente resmungando contra os
máscaras, contra esses "três dias de juízo", largava
disfarçadamente os filhós que fritava com gabada perícia, e arriscava uma
olhadela de beiço torcido para a troça que passava num estardalhaço de
orquestra e de cantos. Somente meu avô, vivendo imerso nas trevas de uma
catarata, não se mexia da sua cadeira-preguiçosa e continuava a fumar o
cachimbo, ouvindo a música, sabe Deus com que saudades da mocidade e da visão.
Na imensa alegria, na inegável ventura de minha infância seria esse talvez o
único instante de compreender o horror da cegueira: a impossibilidade de
apreciar o carnaval.
Nesses "três dias de
juízo" eu não saía da janela, com a minha paciente e meiga sinhá Aninha,
ao lado, protegendo-me e animando-se. Porque o meu entusiasmo pelo deus Momo
se misturava a um temor pronunciado pelos mascarados. Gostava doidamente de
vê-los, porém tinha medo deles.
Mascarados! Que importância
eles assumiam perante meu espírito de criança! Tomava-os na imaginação
infantil como seres reais que apareciam nas manhãs de domingo da
qüinquagésima e se sumiam nas tardes de quarta-feira de Cinzas
misteriosamente. Para mim eles eram eternamente assim, burlescos,
guisalhantes, coloridos, engraçados. Não imaginava sequer que continuassem a
viver, sim, junto a nós, mas com seus trajes habituais, com suas maneiras
comuns e com as suas próprias máscaras. Somente depois, muito depois, vim a
saber disso... Quantas vezes no meio do ano, interrompendo um brinquedo,
indagava de mim mesmo: "Onde estará aquele dominó azul que boliu comigo
na rua do Hospício?" ou "Em que casa morará o cabeça-grande que fez
medo a minha prima Gina?" Que satisfação seria a minha se ele me
aparecesse de repente, como uma alma de outro mundo, sem ser dia de carnaval?
Passavam morcegos. De cetim preto, lantejoulas, fazendo piruetas, abrindo e cerrando asas, cantando ainda:
O morcego bateu
asas
Mas não pode avoá... Depois, eram pierrôs de babadinhos e canudos, diabinhos dando com os rabos nos moleques, os princípes de trajes vistosos e cabeleiras brancas, os caveiras com as costelas à mostra, os professores de palmatória na mão e máscaras de burros, os dominós de veludo, as fronhas nas cabeças e saias de baixo penduradas aos pescoços, os bobos de fraques com botões de bolachas... Em bandos,
Castanholas, guizos, falsetes,
gaitas, reco-recos. Carrerias e gritos:
- Você me conhece?
- Ai... ai... ai...
- Mascarado! Mascarado!
Lá em nossa casa, desde umas
semanas antes, picava-se papel. Vinham das lojas folhas e mais folhas de
papel de seda verde, azul, encarnado, amarelo, roxo, róseo. E, diante de meus
olhos em festa pelos anúncios de Momo, trabalhavam as tesouras de minha
Dindinha, de minhas tias Iaiá e Neném, de minha mãe, de sinhá Aninha, de
Chica... Às vezes eu me metia a ajudante, mas o insucesso era fatal: saía
cada graudão de meter medo. A habilidade consistia justamente em transformar
o papel quase num pó que era para judiar com os outros. Dava uma coceira de
corpo abaixo, do cristão ir tomar banho e mudar a roupa.
Enchiam-se caixas de sapato, cada uma de sua cor. E minha avó relembrava o tempo de moça em que, em vez de se picar papel, fabricavam-se limas-de-cheiro. Reunia-se a família inteira nos antigos solares. As senhoras e sinhazinhas sentadas nas marquesas de jacarandá; as escravas pelo chão em esteiras de pipiri. Acendiam fogareiros, derretia-se em latinhas a cera, a terebintina e a tinta. Depois em formas de madeiras ou gesso moldavam-se as duas bandas da lima e, após enchê-las de água-flórida ou de colônia, soldavam-nas. Eram os projéteis carnavalescos da época. Atirados contra o inimigo, estouravam por percussão e molhavam a pessoa toda. Quando não eram as limas, era o banho dentro de uma gamela, de uma tina, de um barril... Nesse tempo não havia máscaras; existia apenas entrudo.
Agora, o papel picado e a
bisnaga de água perfumada. Uns compravam as bisnagas nas lojas, em caixinhas,
de vários tamanhos: nº 6, 8, 10, 12. Outros traziam os tubos de chumbo vazios
e enchiam-nos
À tardinha, em menino, eu ia
com meus pais, para a residência de uma tia, sinhá Pequena, na rua do
Hospício. Levava um saquinho de papel e umas bisnaguinhas. Dali, via o
desfilar da mascarada, dos clubes pedestres: o Caiadores, o Vassourinhas, o
Parteiras da Boa Vista, o Lenhadores, as Pás, dezenas e dezenas de outros.
Havia anos de se licenciarem para mais de cem. E assistia também ao desfilar do
povo que vinha dos arrabaldes, descendo das maxambombas na estação das
Oficinas e tomando o caminho da rua da Imperatriz.
Uma delícia imcomparável para
meus olhos de dez anos esse espetáculo.
Carnaval de meu tempo...
Que tristeza quando na tarde de
terça-feira a matriz da Boa Vista principiava a dar os toques de cinzas! Com
o escurecer caía uma verdadeira nostalgia dentro de minha alma. O frenesi do
brinquedo, o falsete dos máscaras, o entono das cantigas, as marchas dos
clubes, os clarins do Cavalheiros da Época, não arrefeciam, sim. Antes subiam
de intensidade num paroxismo de folia. Porém a certeza de que tudo aquilo no
dia seguinte cessaria, doía-me no coração.
Faz chorar
Faz chorar O saudoso carnaval Amanhã é quarta-feira Acabou-se o carnaval...
Eu sentia uma saudade que
somente muitos anos depois eu vim a experimentar maior. De outras cousas tão
pouco carnavalescas.
E parecia-me uma blasfêmia
ouvir minha avó sentenciar: Felizmente destes estamos livres.
RECIFE-PE
= 1886-1950
(SETTE, Mário. Maxambombas e maracatus) |
sábado, 1 de março de 2014
CRONICA = Mário Melo
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