A Casa Viaja No Tempo
Volto,
como antigamente, a esta grande casa amiga, na noite de domingo. Recuso, com o
mesmo sorriso, a batida que o dono da casa me oferece, e tomo a mesma
cachacinha de sempre. O dono da casa é o mesmo, a cachaça é a mesma, a casa,
eu… E tantas vezes vim aqui que não tomo consciência das coisas que
mudaram.
Sento-me,
por acaso, ao lado de uma jovem senhora, amiga da família, e a conversa é
tranquila e morna. Mas de repente, a propósito de alguma coisa, ela diz que se
lembra de mim há muito tempo. “Você vinha às vezes jantar, sempre assim, de
paletó e sem gravata. Sentava calado, com a cara meio triste, um ar sério. Eu
me lembro muito bem. Eu tinha seis anos…”
Seis anos!
Certamente não me lembro dessa menina de seis anos; a casa sempre esteve cheia
de meninas e mocinhas, há pessoas que eu conheço de muitos domingos através de
muitos anos, e das quais nem sequer sei o nome. Pessoas que para mim fazem
parte desta casa e desses domingos, visitando esta casa.
A primeira
recordação que tenho dessa jovem é de uma adolescente que às vezes dançava no
jardim. Era certamente linda; mas não creio que tivéssemos trocado, através dos
anos, mais de duas ou três frases ocasionais. Sempre tive a vaga impressão de
que, por algum motivo imponderável, ela não simpatizava comigo. Só agora me dou
conta de que a vi crescer, terei sido uma distraída testemunha de seus flertes,
seu namoro; lembro-me de seu noivado, lembro-me quando se casou, sei que hoje, ainda
tão moça, tem dois filhos – e a maternidade veio definir melhor sua radiosa
beleza juvenil.
Inutilmente
procuro reconstituir a menina de seis anos que me olhava na mesa, e me achava
triste. E não faço a menor ideia do que ela soube ou viu a meu respeito durante
esses inumeráveis domingos. Certamente fui sempre, para ela, uma figura
constante, mas vaga – um senhor feio e quieto, que ela se acostumou a ver
distraidamente de vez em quando – às vezes com um ano ou mais de
intervalo, que viaja e reaparece com a mesma cara e o mesmo jeito. Tomo
consciência de que é a primeira vez que conversamos os dois, ao fim de tantos
anos de vagos “boa-noite” e “como vai?” mas nossa conversa tranquila e trivial
me emociona de repente quando ela diz: “eu tinha seis anos...”
Penso em
tudo o que vivi nestes anos – tanta coisa tão intensa que veio e foi – e penso
na casa, no dono da casa, na família, na gente que passou por aqui. A casa não
é mais a mesma, a casa não é mais casa, é um grande navio que vai singrando o
tempo, que vai embarcando e desembarcando gente no porto de cada domingo:
dentro em pouco outra menina de seis anos, filha dessa menina, estará sentada
na mesma sala, sob a mesma lâmpada, e com seus dois olhinhos pretos verá o
mesmo senhor calado, de cara triste – o mesmo senhor que numa noite de domingo,
sem o saber, se despedirá para sempre e irá para o remoto país onde encontrará
outras sombras queridas ou indiferentes que aqui viveram também suas noites de
domingo – e não voltaram mais.
RUBEM BRAGA
CACHOEIRO DO
ITAPEMIRIM-ES 1913-1990
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