Menino Sonhando O Mundo
Quando tio Gustavo retornou do Sul, era madrugada.
Ouvi os latidos dos cachorros, as batidas na porta de casa e o nome do meu pai
chamado alto. Depois escutei minha mãe chorando, transtornada com a magreza do
tio, seu semblante envelhecido. Tudo se passando junto de mim, em torno da rede
em que eu fingia dormir para escutar as histórias que nunca me contavam.
- Menino não precisa saber certas coisas – era o
que diziam, me enxotando para longe dos mais velhos.
Ofereceram ao tio o pouco que havia em casa:
rapadura, queijo, coalhada fresca. Antes, o tio não comia esses alimentos
rudes. A fome e o sofrimento na terra distante acabaram com seus orgulhos de
homem.
- O Sul não existe – falou enquanto mastigava. – É
pura invenção de violeiro repentista. Eles enchem a cabeça da gente de
promessas mentirosas. Viajar é o mesmo que correr atrás de fumaça.
Mamãe olhava o irmão, em seguida olhava meu pai,
arrumava a roupa vestida às pressas, sem ajuda de um espelho. Era a mais
inquieta de todos nós, a que menos compreendia o mundo nebuloso de onde tio
Gustavo retornava. Para ela, além do Sertão só existiam a Amazônia e o Sul.
Meu pai me dava instrução para o dia que eu tivesse
de migrar. Aprendera a ler sozinho e ensinava o que sabia. Nossos livros
estavam gastos, de tanto passar de mãos. Não eram muitos: A História Sagrada,
As Mil e uma Noites, o Romance de Carlos Magno e os Doze Pares de França, A
Ilíada. Para que precisávamos de mais livros? Toda sabedoria do mundo se
concentrava nestes. Sem transpor os cercados da fazenda, conhecia as cidades da
Terra: as de antigamente e as de agora.
- Você foi ao Mato Grosso? – perguntou meu pai.
- Fui, comecei a viagem por lá. Trabalhava numa
fazenda de café. Os grileiros me fizeram de escravo. Nunca via a cor do
dinheiro, pois estava sempre devendo ao barracão. Tomaram minhas roupas e até o
fumo do cigarro eles controlavam. Tive malária e pensei que não escapava com
vida. Ninguém daqui sabe o que é uma febre. Ela sempre chegava na hora certa e
era a única certeza naquelas paragens. Quando senti que ia morrer, fugi por
dentro da mata. Nem sabia para que lado ficava o norte. Desaprendi a olhar o
céu e a me guiar pelas estrelas. Só enxergava a copa alta das árvores.
O tio enrolou um cigarro na palha de milho e de
onde eu estava senti o cheiro conhecido do fumo. Quando crescesse eu também
fumaria como todos os homens.
- Atravessei muitos rios até chegar à cidade; quase
morro. Mas estou de volta e é como se nunca tivesse saído pra lugar nenhum.
- Você viu a cidade? – perguntou meu pai, com sua
calma habitual.
Sem mexer-me na rede, para não descobrirem que eu
escutava a história e percebia o alvoroço da família, busquei imagens dos meus
livros para ilustrar a conversa misteriosa dos adultos.
- Fale da cidade – pediu minha mãe.
- A cidade é tão conhecida, que nem é preciso
visitar. A gente tem na memória.
Contou sobre o que eu mais esperava ouvir. O
viaduto elevado como os jardins suspensos da Babilônia, maravilha do mundo por
onde passavam pessoas e carros. Embaixo, plantações de flores trazidas do
levante e do poente. A torre de uma catedral gótica, parecendo o minarete de
uma mesquita de Bagdá. Cheguei a ver o califa Harum al Raschid, suas duas mil
concubinas e o muezim anunciando a oração para os fiéis. Lembrava um aboio de
vaqueiro tangendo o gado no fim de tarde. Embalado pela voz do tio, avistei um
primo no exílio da Babel, erguendo as paredes de um edifício alto. O elmo
rolava da cabeça, ele tombava anônimo das muralhas do castelo franco e ficava
caído no chão de asfalto. Ninguém chorava por ele.
O resto se confundiu nos sonhos,
como a noite no dia que principiava.
SABOEIRO-CE = 1950
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