Uma Senhora
Dona Quinota não se importava com
a aspereza do ano inteiro. Com ela era ali no duro - trabalho, trabalho e mais
trabalho. O ordenado das empregadas, na verdade, era uma pouca vergonha que a
polícia devia pôr um paradeiro. Não punha. Vivia metida com a maldita política.
Falta duma boa revolução!.. Ah! se ela fosse homem!... Enquanto a revolução não
vinha para botar tudo nos eixos, obrigando-a a endireitar empregadas, fazia de
criada - cozinhava, varria, cosia, Encerava a casa também, aos sábados, depois
que disseram pelo rádio ser higiênico e muito econômico.
- Econômico? Então se encera
mesmo.
O marido, que já estava acostumado
àquelas resoluções, largou no melhor pedaço o volume de Os Miseráveis, meteu
sobre o pijama a gabardine cheirando a gasolina na gola e foi telefonar para a loja
de ferragens, pedindo duas latas de cera - da boa, vê lá! - chorando um
abatimentozinho na escova e na palha de aço: está ouvindo, seu Fernandes?
Estava sempre para tudo, que,
graças a Deus, era mulher forte. Saíra à mãe, que também o fora, morrendo velha
de desastre, desastre doméstico, uma chaleira de água fervendo para o
escalda-pé do marido, um coronel reformmado, que lhe virou por cima do corpo.
Nunca se queixava da vida. Não ia
à cidade passear, as suas compras eram em regra feitas pelo marido, precisava
que a fita fosse muito falada para ela se abalar até o cinema do bairro, onde
cochilava a bom cochilar; contavam-se os domingo em que ia à missa, não fazia
visitas, nem recebia.
Não reclamava o trabalho que lhe
davam os filhos, três desmazelados que andavam na escola pública, Élcio, Élcia
e Elcina, respectivamente quinze, quatorze e treze anos, o que atesta bem a
força do marido e dá ideia o que seria depois de dez anos de casada, se
depois de Elcina não tomasse as devidas precauções.
- Não se esqueçam de dar
lembranças à Dona Margarida - aconselhava na hora da saída, enquanto punha nas
bolsas as bananas e o pão com manteiga da merenda.Dona Margarida fora sua amiga
no colégio das Irmãs, uma bicha no francês, cearense, um talento! Mandar
lembranças para ela equivalia a dizer: Olha que são meus filhos, Margarida;
filhos de tua amiga Quinota.
E os exames estavam perto, com prêmios
de cadernetas da Caixa Econômica dados pelo prefeito, ridicularizados pelos
jornais oposicionistas, elogiados pelos do governo - a Folha dizia que
era um gesto de mecenas mas enfim fartamente anunciados em todos os jornais
para incentivo da meninada estudiosa. Ela queria ser mordida por um macaco se
não arranjasse três cadernetas para casa. Os filhos é que não faziam fé.
Bordava para fora,cuidava do Joli,
o bichano para sujar a casa era um desespero, e sobrava tempo ainda para ter ciúmes
do marido com as vizinhas, principalmente Dona Consuelo, uma descarada, é
certo, mas muito chique, confessava.
Chegando o carnaval, tirava a
forra.
As economias acumuladas
saiam do Banco Popular juntas com os juros. Não ficava nada. Metia-se numa
fantasia de baiana e inundava a capota do seu automóvel com seus oitenta
e cinco quilos honestíssimos. As meninas iam de baianas também, menos saias,
mais berloques, e o menino de pierrô, cada ano de uma cor, porque não é para
outra coisa que o dono do Tintol gasta aquele dinheirão em anúncios.Tirava do
cabide a casaca do casamento, dezesseis anos por isso (como o tempo corre!),
dava um jeito nas manchas:
- No automóvel, ninguém repara,
meu filho- dizia com um sorriso,ora para a casaca, ora para o marido, que se
traduzia: lembras-te?
Ele, então, com uma faixa vermelha
na cintura, brincos em forma de argola, pendentes das orelhas demasiadas,
enfiava na cabeça um turbante de seda branca com pérolas em profusão, e ia em
pé, no carro, de rajá diplomata.
No terceiro dia, graças a Deus não
choveu em nenhum dos três, perguntava para o marido:
Quanto temos ainda?
Ele remexia a carteira (bolso da
casaca é o tipo de coisa encrencada!), fura-bolos trabalhava passado na língua,
e cantava a quantia:
- Duzentos e oitenta.
- E os oitocentos do automóvel?
- Já estão fora.
- Ah! Bem... - Para fazer contas
no ar era um assombro: ... pode gastar mais cento e cinquenta.
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Não faz mal. Não fazia não. A vida
era aquilo mesmo: três dias - falava. Mas pensava: por ano. Podia dizer, mas
não dizia. Deixava ficar lá dentro. O " lá dentro" de Dona
quinota era uma coisa complicada, complicadíssima, que ninguém compreendia. Só
ela mesma e o marido, às vezes.
Desciam do automóvel à porta da
casa, quando o vizinho veio vindo com o rancho da filharada.
- Assim, assim...
Dona Quinota dizia aquele
"assim-assim" de propósito que lhe importava os outros saberem se ela
tinha gozado ou não? Quem gozava era ela. Mas gostava de ficar
deliciando-se por dentro com a inveja dos vizinhos: assim, assim... Ah!
Ah! Ah!
Seu Adalberto exultava:
É isso mesmo. Fez-se despesas
enormes (e Dona Quinota sorria) e não se diverte nada. (Dona Quinota olhava
para o céu).É sempre assim. Pois olhe: nós fomos a pé mesmo. Estivemos ali na
Avenida na esquina do Derbi, apreciamos o baile do Clube Naval, muita fantasia
rica, muita, vimos perfeitamente as sociedades, tomamos refrescos, brincamos à
grande. Não foi?
As mocinhas fizeram que sim,
humilhadas, mas os guris foram sinceros:
Aquele carro do girassol que
rodava, hem, papai!
Seu Adalberto corrigiu logo:
-Girassol, não, Artur; crisântemo.
Depois que corrigiu, ficou azul, sem
saber ao certo se era crisântemo ou crisantemo - quer ver que eu disse
besteira?
Seu Juca não havia meio de encontrar o
raio da chave. Esses bolsos da casaca!...
-O ano que vem - Dona Quinota falou
firme - nós iremos também a pé.
O marido até se virou. Ficou olhando
espantado.Que diabo é isso? - ia perguntando. Por um triz não perguntou. Mas
ficou assim... Compreendeu? Parece... Esta Quinota!...
Foi quando Seu Adalberto, evidentemente
mortificado, se refez e sentenciou como experiente na matéria, apesar de nunca
ter entrado num automóvel pelo carnaval: é melhor mesmo.
A tribo sumiu pela porta do 37. A
maçaneta fechou por dentro. Torreco torreco. Agora foi a chave - duas voltas. O
pigarro do Seu Adalberto, ainda com o acento do crisântemo a fuzilar-lhe na
cabeça, veio até cá fora se misturar com um resto de choro, pandeiro e
chocalhos, do bonde que passava mais longe. Passos apressados no fundo da rua.
O burro do inglês estava na janela do apartamento fumando para a lua dona Quinota
ficou olhando-o um pouco, depois cerrou a porta bem e fixou o marido que dava
por falta dum brinco: Que cretinos!
Seu Juca parou no meio do
corredor, cara de ressaca, pernas abertas, o turbante nas mãos e esperou mais.
Mas Dona Quinota era hermética. O resto ficou lá dentro onde ninguém ia buscar,
porque o marido, o único interessado na ocasião, mais morto do que vivo,
preferiu tirar o colarinho e a casaca.
Dona Quinota atirou-se na cama
escangalhada e feliz, só acordando na quarta-feira de cinzas ao meio dia.
Quando o resto da família se
levantou, o almoço (feito por ela) já estava na mesa, e dona Quinota se
desesperava porque tinha lido no Jornal do Brasil que foram os
Fenianos que pegaram o primeiro prêmio, quando todo mundo viu
perfeitamente que só o carro-chefe dos Democráticos...
MARQUES REBELO
RIO DE JANEIRO-RJ
= 1907-1973
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