sábado, 4 de janeiro de 2014

MIA COUTO


Perguntas À Língua Portuguesa


Venho brincar aqui no Português, a língua. Não aquela que outros embandeiram. Mas a língua nossa, essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz a nós, moçambicanos, ficarmos mais Moçambique. Que outros pretendam cavalgar o assunto para fins de cadeira e poleiro pouco me acarreta.

A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o voo. Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida. E quantas são? Se a Vida tem, é idimensões? Assim, embarco nesse gozo de ver como a escrita e o mundo mutuamente se desobedecem. 
Meu anjo da guarda, felizmente, nunca me guardou.
Uns nos acalentam: que nós estamos a sustentar maiores territórios da lusofonia. Nós estamos simplesmente ocupados a sermos. Outros nos acusam: nós estamos a desgastar a língua. Nos falta domínio, carecemos de técnica.
Ora qual é a nossa elegância? Nenhuma, exceto a de irmos ajeitando o pé a um novo chão. Ou estaremos convidando o chão ao molde do pé? Questões que dariam para muita conferência, papelosas comunicações. Mas nós, aqui na mais meridional esquina do Sul, estamos exercendo é a ciência de sobreviver. Nós estamos deitando molho sobre pouca farinha a ver se o milagre dos pães se repete na periferia do mundo, neste subúrbio.
No enquanto, defendemos o direito de não saber, o gosto de saborear ignorâncias. Entretanto, vamos criando uma língua apta para o futuro, veloz como a palmeira, que dança todas as brisas sem deslocar seu chão. Língua artesanal, plástica, fugidia a gramáticas.
Esta obra de reinvenção não é operação exclusiva dos escritores e linguistas. Recriamos a língua na medida em que somos capazes de produzir um pensamento novo, um pensamento nosso. O idioma, afinal, o que é senão o ovo das galinhas de ouro?
Estamos, sim, amando o indomesticável, aderindo ao invisível, procurando os outros tempos deste tempo. Precisamos, sim, de senso incomum. Pois, das leis da língua, alguém sabe as certezas delas? Ponho as minhas irreticências. Veja-se, num sumário exemplo, perguntas que se podem colocar à língua: 
– Se  pode dizer de um careca que tenha couro cabeludo?
– No caso de alguém dormir com homem de raça branca é então que se aplica a expressão: passar a noite em branco?
– A diferença entre um às no volante ou um asno volante é apenas de ordem fonética?
– O mato desconhecido é que é o anonimato?
– O pequeno viaduto é um abreviaduto?
– Como é que o mecânico faz amor? Mecanicamente?
– Quem vive numa encruzilhada é um encruzilheu?
– Se diz do brado de bicho que não dispõe de vértebras: o invertebrado?
– Tristeza do boi vem dele não se lembrar que bicho foi na última reencarnação. Pois se ele, em anterior vida, beneficiou de chifre o que está ocorrendo não é uma reencornação?
– O elefante que nunca viu mar, sempre vivendo no rio: devia ter marfim ou riofim?
– Onde se esgotou a água se deve dizer: “aquabou”?
– Não tendo sucedido em Maio mas em Março o que ele teve foi um desmaio ou um desmarço?
– Quando a paisagem é de admirar constrói-se um admiradouro?
– Mulher desdentada pode usar fio dental?
– A cascavel a quem saiu a casca fica só uma vel?
– As reservas de dinheiro são sempre finas. Será daí que vem o nome: “finanças”?
– Um tufão pequeno: um tufinho?
– O cavalo duplamente linchado é aquele que relincha?
– Em águas doces alguém se pode salpicar?
– Adulto pratica adultério. E um menor: será que pratica minoritério?
– Um viciado no jogo de bilhar pode contrair bilharziose?
– Um gordo, tipo barril, é um barrilgudo?
– Borboleta que insiste em ser ninfa: é ela a tal ninfomaníaca?
Brincadeiras, brincriações. E é coisa que não se termina. Lembro a camponesa da Zambézia. Eu falo português corta-mato, dizia. Sim, isso que ela fazia é, afinal, trabalho de todos nós. Colocamos essoutro português – o nosso português – na travessia dos matos, fizemos que ele se descalçasse pelos atalhos da savana.
Nesse caminho lhe fomos somando colorações. Devolvemos cores que dela haviam sido desbotadas – o racionalismo trabalha que nem lixívia. Urge ainda adicionar-lhe músicas e enfeites, somar-lhe o volume da superstição e a graça da dança. É urgente recuperar brilhos antigos. Devolver a estrela ao planeta dormente.

 
MOÇAMBIQUE, 1955 

 

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