Sala De Espera
Sala de espera
de dentista. Homem dos seus quarenta anos. Mulher jovem e bonita. Ela folheia
uma Cruzeiro de 1950. Ele finge que lê uma Vida dentária.
Ele pensa: que
mulherão. Que pernas. Coisa rara, ver pernas hoje em dia. Anda todo mundo de
jeans. Voltamos à época em que o máximo era espiar um tornozelo. Sempre fui um
homem de pernas. Pernas com meias. Meias de náilon. Como eu sou antigo. Bom era
o barulhinho. Suish-suish. Elas cruzavam as pernas e fazia suish-suish. Eu era
doido por um suish-suish.
Ela pensa: cara
engraçado. Lendo a revista de cabeça para baixo.
Ele: te arranco
a roupa e te beijo toda. Começando pelo pé. Que cena. A enfermeira abre a porta
e nos encontra nus sobre o carpete, eu beijando o pé. O que é isso?! Não é o
que a senhora está pensando. É que entrou um cisco no olho desta moça e eu
estou tentando tirar. Mas o olho é na outra ponta! Eu ia chegar lá. Eu ia
chegar lá.
Ela: ele está
olhando as minhas pernas por baixo da revista. Vou descruzar as pernas e cruzar
de novo. Só para ele aprender.
Ele: ela
descruzou e cruzou de novo! Ai meu Deus. Foi pra me matar. Ela sabe que eu
estou olhando. Também, a revista está de cabeça pra baixo. E agora? Vou ter que
dizer alguma coisa.
Ela: ele até que
é simpático, coitado. Grisalho. Distinto. Vai dizer alguma coisa…
Ele: o que é que
eu digo? Tenho que fazer alguma referência à revista virada. Não posso deixar
que ela me considere um bobo. Não sou um adolescente. Finjo que examino a revista
mais de perto, depois digo “Sabe que só agora me dei conta de que estava lendo
essa revista de cabeça para baixo? Pensei que fosse em russo.” Aí ela ri e eu
digo “E essa sua Cruzeiro? Tão antiga que deve estar impressa em pergaminho, é
ou não é? Deve ter desenhos infantis do Millôr.” Aí riremos os dois,
civilizadamente. Falaremos nas eleições e na vida em geral. Afinal, somos duas
pessoas normais, reunidas por circunstância numa sala de espera. Conversaremos
cordialmente. Aí eu dou um pulo e arranco toda a roupa dela.
Ela: ele vai
falar ou não? É do tipo tímido. Vai dizer que tempo, né? A senhora não acha? É
do tipo que pergunta “Senhora ou senhorita?” Até que seria diferente. Hoje em
dia a maioria já entra rachando… Vamos variar de posição, boneca? Mas espere,
nós ainda nem nos conhecemos, não fizemos amor em posição nenhuma! É que eu
odeio as preliminares. Esse é diferente. Distinto. Respeitador.
Ele: digo o quê?
Tem um assunto óbvio. Estamos os dois esperando a vez num dentista. Já temos
alguma coisa em comum. Primeira consulta? Não, não. Sou cliente antiga. Estou
no meio do tratamento. Canal? É. E o senhor? Fazendo meu check-up anual. Acho
que estou com uma cárie aqui atrás. Quer ver? Com esta luz não sei se… Vamos
para o meu apartamento. Lá a luz é melhor. Ou então ela diz pobrezinho, como
você deve estar sofrendo. Vem aqui e encosta a cabecinha no meu ombro, vem. Eu
dou um beijinho e passa. Olhe, acho que um beijo por fora não adianta. Está
doendo muito. Quem sabe com a sua língua…
Ela: ele desistiu
de falar. Gosto de homens tímidos. Maduros e tímidos. Ele está se abanando com
a revista. Vai falar do tempo. Calor, né? Aí eu digo “É verão”. E ele: “É
exatamente isso! Como você é perspicaz. Estou com vontade de sair daqui e tomar
um chope”. “Nem me fale em chope.” “Você não gosta de chope?” “Não, é que
qualquer coisa gelada me dói a obturação”. “Ah, então você está aqui para
consultar o dentista, como eu. Que coincidência espantosa! Os dois estamos com
calor e concordamos que a causa é o verão. Os dois temos o mesmo dentista. É o
destino. Você é a mulher que eu esperava todos estes anos. Posso pedir sua mão
em noivado?”
Ele: ela está
chegando ao fim da revista. Já passou o crime do Sacopã, as fotos de discos
voadores… Acabou! Olhou para mim. Tem que ser agora. Digo: “Você está aqui para
limpeza de pernas? Digo, de dentes? Ou para algo mais profundo como uma paixão
arrebatadora por pobre de mim?”
Ela: e se eu
disser alguma coisa? Estou precisando de alguém estável na minha vida. Alguém
grisalho. Esta pode ser a minha grande oportunidade. Se ele disser qualquer
coisa, eu dou o bote. “Calor, né?” “Eu também te amo!”
Ele: melhor não
dizer nada. Um mulherão desses. Quem sou eu? É muita perna pra mim. Se fosse
uma só, mas duas! Esquece, rapaz. Pensa na tua cárie que é melhor. Claro que
não faz mal dizer qualquer coisinha. Você vem sempre aqui? Gosto do Roberto
Carlos? O que serão os buracos negros? Meu Deus, ela vai falar!
- O senhor
podia…
- Não! Quero
dizer, sim?
- Me alcançar
outra revista?
- Ahn… Cigarra
ou Revista da Semana?
- Cigarra.
Aqui está.
- Obrigada.
Aí a enfermeira
abre a porta e diz:
- O próximo.
E eles nunca
mais se vêem.
PORTO ALEGRE-RS = 1936
Nenhum comentário:
Postar um comentário