As Cruzes
As senhores grazinavam, como periquitos em roçado, em torno
da mesa do chá, quando Mme. Gama Simpson se curvou, rindo com alarido, sobre a
toalha de linho bordada de cegonhas vermelhas, numa escandalosa explosão de
alegria. Segurando em uma das mãos a taça de porcelana e na outra, fechadinha
como um botão de rosa, uma torradinha cor de ouro, a linda criatura ria
despreocupadamente, agitando-se na cadeira, quando, com o movimento do corpo,
lhe saltou do colo de neve e rosa, pela janela de seda do decote, a sua custosa
cruz de brilhante, fugindo-lhe para o ombro, com o risco de perder-se.
- Cuidado com a cruz, madame! - avisou, atencioso, do outro
lado da mesa, o conselheiro Atanásio, que observava, sem perder um movimento do
solo, as ondulações do Calvário e os arredores da Jerusalém.
D. Lisete olhou o decote, apanhou a cruz fugitiva, e,
aconchegando-a à carne rosada, queixou-se, risonha:
- Também, que idéia esta, de inventar cruzes para o colo da
gente!
- Vossa Excelência não sabe, então, o que elas significam,
na opinião de Tabarin?
As senhoras mostraram-se curiosas de conhecer a origem
daquele costume, e o antigo palaciano começou, medindo as palavras:
- Na Idade Média, quando eram deficientes os meios de
comunicação de cidade para cidade, de aldeia para aldeia, de um castelo para
outro castelo, os monges, que dominavam nos países barbarizados da Europa
tomaram a si a incumbência de marcar os caminhos, cujas direções eram
assinaladas por meio de cruzes. Ao deparar, na mata ou na montanha, um destes
símbolos da cristandade, o viajante já sabia que não errara o seu roteiro, e
que a estrada era, mesmo, por ali...
- Mas... - interrompeu, impaciente, Mme. Souza Batista.
- Espere... - implorou o conselheiro.
E continuou:
- Mais tarde, com o advento das modas femininas, e com o
aproveitamento, por parte das mulheres, de todas as conquistas do homem,
entenderam elas de utilizar o mesmo símbolo, com a mesma significação.
- A cruz no colo das mulheres quer dizer, então, alguma
coisa? - interrompeu, franzindo a testa, Mme. Werther.
- Evidentemente, minha senhora! - tornou o conselheiro.
E explicou:
- Elas estão dizendo, como nas montanhas antigas, que... o
caminho é por ali!
Quando o conselheiro terminou a sua narrativa, Mme. Simpson
procurou a sua cruz de brilhantes, e tomou um susto. Com os seus modos
estabanados, a cruz havia, de novo, abandonado o decote, e fugido para trás...
HUMBERTO DE CAMPOS
MIRITIBA-MA = 1886-1934
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