ALUÍSIO AZEVEDO
SÃO LUÍS-MA =
1857-1913
Casas De Cômodos
Há no Rio de Janeiro, entre os que não
trabalham e conseguem sem base pecuniária fazer pecúlio e até enriquece; um
tipo digno de estudo - é o "dono de casa de cômodos"; mais curioso e
mais completo no gênero que o "dono de casa de jogo"; pois este ao
menos representa o capital da sua banca, suscetível de ir
à glória, ao
passo que o outro nenhum capital representa, nem arrisca, ficando, além de
tudo, isento da pecha de mal procedido.
Quase sempre forasteiro, exercia dantes um
oficio na pátria que deixou para vir tentar fortuna no Brasil; mas, percebendo
que aqui a especulação velhaca produz muito mais do que o trabalho honesto,
tratou logo de esconder as ferramentas do oficio e de fariscar os meios de, sem
nada fazer, fazer dinheiro. Foi a um patrício seu, estabelecido no comércio,
pediu e dele obteve uma carta de fiança, alugou um vasto casario de dois ou
três andares, meteu-se lá dentro, pregou escritos em todas as janelas; e agora
o verás!
Como na Capital Federal há mais quem habite
do que onde habitar, começou logo a entrar-lhe pela casa, à procura de cômodos,
uma interminável procissão de desamparados da sorte e de magros lutadores pela
vida, que lhe foram enchendo surdamente, do primeiro ao último, os numerosos
quartos. Mais houvesse, e não faltariam para os ocupar estudantes pobres,
carteiros e praticantes do correio, repórteres de jornais efêmeros, moços de
botequim, operários de todas as profissões, comparsas e figurantes de teatro,
pianistas de contrato por noite, cantores de igreja, costureiras sem oficina,
cigarreiros sem fábrica, barbeiros sem loja, tipógrafos, guarda-freios,
limpa-trilhos, bandeiras de bondes, enfim toda essa pobre gente, para quem se
inventaram os postos mais ingratos na luta pela vida, os mais precários e os
mais arriscados; essa gente que em tempo de paz morre de fome, e em tempo de
guerra dá de comer com a própria carne às bocas de fogo das baterias inimigas.
Mas, por entre a aflita farandolagem dos
ganhadores de pão para a boca, surge sempre na casa de cômodos um tipo que é o
desespero do locador e o tormento dos locatários. Refiro-me ao poeta boêmio.
O poeta boêmio é para o alugador de cômodos
o osso do seu ofício. Sem emprego, sem rendimentos de nenhuma espécie, sem
mesada e sem mobília, carregado de sonhos, que são os filhos que lhe deu
Quimera, sua amante, o poeta boêmio vive da desgraça e da glória de ser poeta,
atravessando indiferentemente todos os andares da miséria, olhos fitos no
ideal, aos encontrões com os miseráveis que sobem e com os miseráveis que
descem as longas escadarias do negro e frio castelo. Seu pé quase descalço não
respeita o que topa, nem escolhe o terreno que pisa, e vai mundo afora,
kneippeando pelos simétricos canteiros da burguesia indignada e pelos relvosos
coradouros das lavadeiras em fúria.
Esse é o anjo mau da casa, o terror dos
vizinhos, o malquerido de todos os locatários. Dorme enquanto os outros
trabalham e durante a noite conversa com as estrelas, declamando em voz alta
cousas de amor e de fantasia que, ali, só ele e elas compreendem.
Esse nunca paga.
Mas que importa o calote de um boêmio, cujo
quarto era pouco maior que uma sepultura, se os outros inquilinos aí ficam para
ir despejando, todos os meses, na funda algibeira do malandro, os trinta, os
quarenta, os cinqüenta e os cem mil réis; e se com esse dinheiro pode o
alugador de cômodos pagar o aluguel do prédio, e comer, e beber, e gozar, pondo
ainda de parte o seu pecúlio em que já se abotoa a futura riqueza e talvez a
futura comenda?
E assim vai vivendo o esperto forasteiro à
barba longa, perna alçada e barriga farta, enquanto os outros trabalham para
ele.
Lá um belo dia de fim de mês, um dos
estudantes da casa, tendo devorado a mesada, atira a canastra pela janela e
foge em seguida, abandonando a estreita cama de ferro, a mesinha, e o
lavatório; e, como os maus exemplos aproveitam sempre um segundo estudante, e
um terceiro e um quarto seguem, como as famosas pombas de mestre Raimundo
Correia, o vôo do companheiro e cá vão ficando no pombal as meias cômodas, as
estantes americanas e as cadeiras compradas no belchior. E outros, e outros
inquilinos, atrasados no pagamento do mês vencido, lá se vão a contragosto.
Não já pela janela, mas pela porta da rua,
com uma descompostura atrás, deixando nas gloriosas mãos do triunfador, como
despojo de luta, os tarecos que constituíam a sua mobília.
Então, o dono da casa de cômodos começa a
anunciar "Quartos mobiliados" e começa a cobrar aos novos hóspedes o
duplo do que cobrava aos primitivos. E, ao fim de algum tempo, aí está o nosso
homem pondo de parte, a cada mês, o triplo do que dantes punha, porque já não
aluga aposento sem mobília e sem roupa de cama.
São sempre os inquilinos quem guarnece de
móveis as hospedarias desse gênero. Daí a ter o que se chama "Casa de
pensão" só vai um passo, e a cousa faz-se quase sempre do seguinte modo: -
Como o malandro nada mais tem a fazer durante todo o mês do que cobrar os
aluguéis no dia primeiro, enche as horas de calor a ensinar habilidades ao seu
cão ou ao seu papagaio, e nas horas frescas vai para a calçada da rua cavaquear
com os vizinhos.
Entre estes há sempre uma quitandeira de
quem o dono da casa de cômodos, começando por merecer a simpatia, acaba por
conquistar a confiança e o amor. Juntam-se e, quando ela dá por si, está
cozinhando e lavando para todos os hóspedes do eleito do seu coração, sem
outros vencimentos além das carícias, que lhe dá o amado sócio.
Assim chega a empresa ao seu completo
desenvolvimento, e o dono da casa de pensão começa a ganhar em grosso,
acumulando forte, sem trabalhar nunca, nem empregar capital próprio, até que um
dia, farto de aturar o Brasil, passa com luvas o estabelecimento e retira-se
para a pátria, deixando, naturalmente também com luvas, a preciosa quitandeira
ao seu substituto.
E, quando algum dos inquilinos fala mais
alto no seu quarto, ou quando os estudantes e as costureiras dão para rir e
cantar, acode o locador e ordena que se calem, gritando que não admite barulhos
em "sua casa".
Sua casa! Ora, eis aí, ao meu ver, uma
cousa singularíssima. O aluguel daquele prédio é pago pelos hóspedes, como é a
mesa, o gás, a água e o serviço dos criados. Tudo que ali está dentro foi
comprado pelos locatários e não pelo locador; ali só há um homem que não
trabalha e que não paga o lugar que ocupa, nem a comida que consome, nem o
serviço dos que o servem; e é, no entanto, esse homem justamente quem só tem
ali o direito de dizer que está em sua casa e o único que grita e manda como
verdadeiro dono.
Será legal, mas é injusto e é duro. Se ao
menos o especulador tomasse a responsabilidade do que se passa dentro da
"sua casa", vá, mas nem isso acontece, porque quando os inquilinos
são vitimados pelos gatunos, ninguém lhes responde pelo objeto subtraído.
Entrássemos lá agora, neste instante, e
espiássemos para dentro de cada quarto. Neste veríamos um pobre homem a fazer
charutos; naquele uma mulher a coser camisas; mais adiante um artista a
desenhar; outro a decorar um papel de comédia; outro a escrever; outro a
consertar relógios; e aqui um estudante às voltas com uma caveira e um
compêndio de medicina; e ali um fotógrafo a preparar clíchês. E,
se indagássemos o que fazem os hóspedes ausentes cujos quartos estão fechados e
não garantidos por ninguém, saberíamos que todos eles andam a ganhar a vida, ao
balcão, na rua, nas oficinas, nas secretarias, nas redações das folhas e nos
escritórios de todos os gêneros.
Pois bem! Enquanto toda essa gente moureja,
o que faz o locador? O locador, defronte do seu papagaio, estala os dedos com a
mão no ar e, risonho, a babar-se feliz, diz-lhe pela milésima vez:
"Papagaio real, para Portugal! Quem passa meu louro? É o rei que vai à
caça!"
Todavia, certo é que dentre toda aquela
gente, é ele o único que tem imputabilidade social em nosso meio.
Será justo? Não sei, mas, parece-me que o
direito de ter casa de alugar cômodos ou casa de pensão devia ser conferido
pelo governo, como um privilégio de recompensa, somente aos inválidos da
pátria, que já não possam trabalhar, ou às viúvas dos militares, dos artistas e
dos filósofos, que se tenham sacrificado em nossa honra e morrido na pobreza.
Que diabo! não vale a pena fazer propaganda
de imigração para termos belos malandros que ensinem papagaios a falar!
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