O Diário De Muzema
MUZEMA É UM bairrozinho pequeno e pacato, ali pelas bandas
da Barra da Tijuca. Pertence à jurisdição da 32ª Delegacia Distrital e nunca dá
bronca. Ou melhor, minto… não dava bronca porque esta que deu agora foi fogo.
Diz que o delegado da 32ª estava em sua mesa de soneca tirando uma pestana,
feliz com o sossego, quando um bando de perto de 200 pessoas invadiu a
delegacia, carregando no ar um coitado, baixote e magrinho, com a cara mais
amassada que pára-choque de ônibus de subúrbio. E a turba fazia um barulho de
acordar prontidão. O delegado, que era o Levi, deu um pulo da cadeira e berrou:
— Chamem a Polícia!!!
— mas aí percebeu que ele mesmo é que era a Polícia e
perguntou que diabo era aquilo. Logo todo mundo começou a berrar ao mesmo
tempo, o que obrigou o Dr. Levi a berrar mais alto ainda, ordenando:
— Um de cada vez, pombas! Aí um dos que carregavam o
pequenino, ordenou que os companheiros pusessem “aquele rato” no chão (a
expressão é lá do cara) e começou a explicar:
— Nós somos moradores do bairro de Muzema, doutor Delegado.
— Sim. E esse pequenino aí?
— Pois é, doutor. Nós somos todos de lá e esse cretino aí
também é. Imagine o senhor que ele tem um caderno grosso, que ele chama de “Meu
Diário”, onde escreve as maiores sujeiras sobre a gente.
— Como é que é?
— estranhou o delegado. Começou todo mundo a berrar outra
vez e, enquanto um guarda dava um copo de água para o diarista arrebentado, o
delegado viu-se outra vez a berrar mais alto:
— Calem-se! Um só de cada vez! Foi aí que deram a palavra
pro dono do caderno:
— É o seguinte, doutor: eu tenho um diário. Ando muito lá
pela Muzema e ninguém nunca repara em mim. Assim eu posso ver o que os outros
fazem sem ser importunado. Mas acontece que eu não sou fofoqueiro. Eu vejo cada
coisa de arrepiar. Ainda ontem eu vi a mulher daquele ali (e apontou para um
sujeito do grupo) num escurinho da praça, abraçada com aquele lá (e apontou um
outro sujeito no canto da delegacia, que, ao ser apontado, encolheu-se todo).
Esta informação bastou para que o assinalado marido partisse pra cima do
encolhido e o tumulto se generalizasse. Coitado do delegado, já estava quase
rouco, quando conseguiu reimplantar a ordem na 32a DD.
— Prossiga!
— Disse pro pequenino. O pequenino pigarreou e prosseguiu:
— Como eu dizia, eu tenho o meu diário e anoto nele tudo
que vejo. Não faço fofoca com ninguém. Tudo que está escrito é verídico.
— Como é o seu nome? Onde você mora?
— Edson Soares. Moro lá mesmo na Muzema. Lote “A”, casa 18.
O Delegado Levi pediu o diário e folheou algumas páginas. Havia coisas mais ou
menos assim, escritas nele. “Dona Jurema, do lote “B”, casa 75, estava saindo
de madrugada da casa 67 do mesmo lote, onde mora o Sebastião, que tem um cacho
com ela há muito tempo”. Ou então: “Lilico continua fingindo que é noivo da
filha de Dona Júlia, mas se aquilo é noivado eu sou girafa. Como eles mandam
brasa, atrás do muro da casa dela”. O Delegado Levi tossiu, embaraçado, e quis
saber como é que os personagens daquele diário tinham descoberto o que estava
escrito ali. O pequenino foi sincero:
— Eu dei azar, doutor. Eu esqueci o diário num banco da
pracinha e fui jantar. Quando eu voltei estava todo mundo em volta desse garoto
aí (e apontou um garoto sorridente, que se divertia com o bafafá), e o
miserável do garoto lendo em voz alta:”… o seu Osooo… Osório. Não: Osório. O
seu Osório quando sai pra o trai… tralba… para o trabalho, devia levar a muuu…
a mulher dele. Ela é muito assada… assada não… muito assanhada”.
— Eu achei o diário dele
— falou o garoto, mas calou-se logo ao levar um cascudo de
um gordão que devia ser, na certa, o seu Osório. Já ia saindo onda outra vez. O
pessoal do bairro pacato estava mesmo disposto a beber o sangue de Edson
Soares, o historiador da localidade. Sanada, todavia, mais esta tentativa o
Delegado Levi perguntou ao dono do diário:
— O senhor também é poeta?
— Mais ou menos, né?
— Eu pergunto
— esclareceu o delegado
— porque este versinho aqui está interessante, e leu no
diário: “Para o José Azevedo / O futebol não cola / Pois se for cabecear / Na
certa ele fura a bola”. Pimba… mais uma bolacha premiou a cara do poeta.
Ninguém conseguia segurar José Azevedo, residente na Muzema, Lote “J”, casa 77.
O pau roncou solto e só quando chegou reforço é que o delegado conseguiu botar
em cana uns quatro ou cinco, inclusive o biógrafo muzemense. O resto mandou
embora, aconselhando:
— Vocês vejam se não dão margem ao artista de se expandir
tanto, em seu futuro diário, tá? O pessoal prometeu.
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