sábado, 28 de dezembro de 2013
POESIA = Fernando Pessoa
Isto
Dizem que finjo ou minto
Tudo o que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
Tudo o que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
FERNANDO PESSOA
PORTUGAL = 1888-1935
CONTO = Stanislaw Ponte Preta
O Diário De Muzema
MUZEMA É UM bairrozinho pequeno e pacato, ali pelas bandas
da Barra da Tijuca. Pertence à jurisdição da 32ª Delegacia Distrital e nunca dá
bronca. Ou melhor, minto… não dava bronca porque esta que deu agora foi fogo.
Diz que o delegado da 32ª estava em sua mesa de soneca tirando uma pestana,
feliz com o sossego, quando um bando de perto de 200 pessoas invadiu a
delegacia, carregando no ar um coitado, baixote e magrinho, com a cara mais
amassada que pára-choque de ônibus de subúrbio. E a turba fazia um barulho de
acordar prontidão. O delegado, que era o Levi, deu um pulo da cadeira e berrou:
— Chamem a Polícia!!!
— mas aí percebeu que ele mesmo é que era a Polícia e
perguntou que diabo era aquilo. Logo todo mundo começou a berrar ao mesmo
tempo, o que obrigou o Dr. Levi a berrar mais alto ainda, ordenando:
— Um de cada vez, pombas! Aí um dos que carregavam o
pequenino, ordenou que os companheiros pusessem “aquele rato” no chão (a
expressão é lá do cara) e começou a explicar:
— Nós somos moradores do bairro de Muzema, doutor Delegado.
— Sim. E esse pequenino aí?
— Pois é, doutor. Nós somos todos de lá e esse cretino aí
também é. Imagine o senhor que ele tem um caderno grosso, que ele chama de “Meu
Diário”, onde escreve as maiores sujeiras sobre a gente.
— Como é que é?
— estranhou o delegado. Começou todo mundo a berrar outra
vez e, enquanto um guarda dava um copo de água para o diarista arrebentado, o
delegado viu-se outra vez a berrar mais alto:
— Calem-se! Um só de cada vez! Foi aí que deram a palavra
pro dono do caderno:
— É o seguinte, doutor: eu tenho um diário. Ando muito lá
pela Muzema e ninguém nunca repara em mim. Assim eu posso ver o que os outros
fazem sem ser importunado. Mas acontece que eu não sou fofoqueiro. Eu vejo cada
coisa de arrepiar. Ainda ontem eu vi a mulher daquele ali (e apontou para um
sujeito do grupo) num escurinho da praça, abraçada com aquele lá (e apontou um
outro sujeito no canto da delegacia, que, ao ser apontado, encolheu-se todo).
Esta informação bastou para que o assinalado marido partisse pra cima do
encolhido e o tumulto se generalizasse. Coitado do delegado, já estava quase
rouco, quando conseguiu reimplantar a ordem na 32a DD.
— Prossiga!
— Disse pro pequenino. O pequenino pigarreou e prosseguiu:
— Como eu dizia, eu tenho o meu diário e anoto nele tudo
que vejo. Não faço fofoca com ninguém. Tudo que está escrito é verídico.
— Como é o seu nome? Onde você mora?
— Edson Soares. Moro lá mesmo na Muzema. Lote “A”, casa 18.
O Delegado Levi pediu o diário e folheou algumas páginas. Havia coisas mais ou
menos assim, escritas nele. “Dona Jurema, do lote “B”, casa 75, estava saindo
de madrugada da casa 67 do mesmo lote, onde mora o Sebastião, que tem um cacho
com ela há muito tempo”. Ou então: “Lilico continua fingindo que é noivo da
filha de Dona Júlia, mas se aquilo é noivado eu sou girafa. Como eles mandam
brasa, atrás do muro da casa dela”. O Delegado Levi tossiu, embaraçado, e quis
saber como é que os personagens daquele diário tinham descoberto o que estava
escrito ali. O pequenino foi sincero:
— Eu dei azar, doutor. Eu esqueci o diário num banco da
pracinha e fui jantar. Quando eu voltei estava todo mundo em volta desse garoto
aí (e apontou um garoto sorridente, que se divertia com o bafafá), e o
miserável do garoto lendo em voz alta:”… o seu Osooo… Osório. Não: Osório. O
seu Osório quando sai pra o trai… tralba… para o trabalho, devia levar a muuu…
a mulher dele. Ela é muito assada… assada não… muito assanhada”.
— Eu achei o diário dele
— falou o garoto, mas calou-se logo ao levar um cascudo de
um gordão que devia ser, na certa, o seu Osório. Já ia saindo onda outra vez. O
pessoal do bairro pacato estava mesmo disposto a beber o sangue de Edson
Soares, o historiador da localidade. Sanada, todavia, mais esta tentativa o
Delegado Levi perguntou ao dono do diário:
— O senhor também é poeta?
— Mais ou menos, né?
— Eu pergunto
— esclareceu o delegado
— porque este versinho aqui está interessante, e leu no
diário: “Para o José Azevedo / O futebol não cola / Pois se for cabecear / Na
certa ele fura a bola”. Pimba… mais uma bolacha premiou a cara do poeta.
Ninguém conseguia segurar José Azevedo, residente na Muzema, Lote “J”, casa 77.
O pau roncou solto e só quando chegou reforço é que o delegado conseguiu botar
em cana uns quatro ou cinco, inclusive o biógrafo muzemense. O resto mandou
embora, aconselhando:
— Vocês vejam se não dão margem ao artista de se expandir
tanto, em seu futuro diário, tá? O pessoal prometeu.
POESIA = Deolindo Tavares
O Poeta
Sou mais pobre do que Job.
Sou mais rico do que Salomão.
Sou um poeta. Sou o maior de todos
os descobridores.
Sem navio, sem bússola e sem leme,
descubro istmos e estrelas.
Posso ser amado e odiado, condenado
e insultado,
Sem odiar, sem condenar, sem
insultar.
Sei tão somente amar e perdoar.
Não tenho castelos, nem rosas, nem
amores,
Mas, em misterioso sonho,
Ora passeio no carro de Salomão,
Ora durmo sobre as cinzas de Job.
Alimento-me de céu, de flores e da
beleza eterna
Das paisagens de Deus;
adormeço num som,
desperto numa cor,
morro afogado no mar de uma
inesperada estrela.
Para mim não há, nem ontem, nem
amanhã, nem depois,
Vida e morte, alegria nem dor.
Para mim o dia é uma eternidade.
A eternidade o menor tempo;
Para mim o tempo não existe,
Pois rasguei todos os calendários do
mundo.
Um dia, tendo as mãos límpidas, a
alma serena
E pureza em meu coração,
Caminharei em firmes passos para o
céu de cristo ou de Maomé.”
DEOLINDO TAVARES
RECIFE-PE =
1918-1942
CRÔNICA = Paulo Mendes Campos
Chatear E Encher
Um amigo meu me ensina a diferença entre “chatear” e “encher”. Chatear é assim: você telefona para um escritório qualquer na cidade.
— Alô, quer me chamar por favor o Valdemar?
— Aqui não tem nenhum Valdemar.
Daí a alguns minutos você liga de novo.
— O Valdemar por obséquio.
— Cavalheiro, aqui não trabalha nenhum Valdemar.
— Mas não é do número tal?
— É, mas aqui nunca teve nenhum Valdemar.
Mais cinco minutos, você liga o mesmo número:
— Por favor, o Valdemar já chegou?
— Vê se te manca palhaço. Já não lhe disse que o diabo
desse Valdemar nunca trabalhou aqui?
— Mas ele mesmo me disse que trabalhava aí.
— Não chateia.
Daí a dez minutos, ligue de novo.
— Escute uma coisa: o Valdemar não deixou pelo menos um
recado?
O outro dessa vez esquece a presença da datilógrafa e diz coisas impublicáveis.
Até aqui é chatear. Para encher, espere passar mais dez minutos, faça nova ligação:
O outro dessa vez esquece a presença da datilógrafa e diz coisas impublicáveis.
Até aqui é chatear. Para encher, espere passar mais dez minutos, faça nova ligação:
— Alô. Quem fala aqui é o Valdemar! Alguém telefonou
para mim?
PAULO MENDES CAMPOS
BELO HORIZONTE-MG =
1922-1991
POESIA = Ascenso Ferreira
Mulata Sarará
O cajueiro te deu
a flor para o cabelo;
deu-te o maracajá
o agateado dos olhos
- teus olhos cujo
olhar faz a gente dodói!
No Brasil, quem
te nega está fazendo é fita,
pois tu és, na
verdade, uma coisa bonita:
-Madeira que o
cupim não rói!
-Madeira que o
cupim não rói!
Paris – que dá
modas
costumes e
gostos,
pinturas pros
rostos,
carvão e
carmim...
Paris – dente de
ouro!
- Boca de
Tubarão!
- Goela de
Sucuri!
Que engole
Odaliscas
Rajás e Sultanas,
as Gueixas,
Musmês,
os Beis e os
Paxás...
Paris, contigo,
topou foi osso!
- Madeira que o
cupim
não rói!
ASCENSO FERREIRA
PALMARES-PE =
1895-1965
MILLÔR FERNANDES
A Mensagem
Num mundo
em que a comunicação é tudo e o dinheiro sempre pouco, conta-se aqui uma
história altamente moral sobre a inutilidade da primeira enquanto se economiza
o segundo:
E chamou o
pintor e lhe encomendou a placa para anunciar a especialidade do seu negócio:
“Nesta casa se vendem ovos frescos”. Além dos dizeres recomendou ao pintor que
bolasse uma figura, uma alegoria referente ao ramo. E perguntou quanto era. O
pintor disse que ficaria em 50.000. Cinquenta mil o quê?, indagou o
comerciante, pensando, inutilmente, numa moeda mais desvalorizada do que o
cruzeiro. Cinquenta mil cruzeiros, disse o pintor. Ah, não vale, disse então o
comerciante. Como não vale?, retrucou o pintor, ofendido em sua arte mais do
que atingido em sua economia. O senhor não poderia reduzir um pouco?, arriscou
o comerciante. Claro que posso, disse o pintor, posso reduzir a figura e os
dizeres. Como assim?, disse o negociante? Olha, explicou o pintor, pra começo
de conversa não precisamos usar figura nenhuma. Se se diz que o senhor vende
ovos não há necessidade de colocar nenhuma galinha pintada, não é mesmo? Se o
normal são ovos de galinha, o fato de não ter nenhuma outra ave faz com que os
ovos sejam, presumivelmente, de galinha. É certo, concordou o negociante.
Então, fez o pintor, vinte mil cruzeiros de menos. Agora também não é
necessário dizer nesta casa. Se o freguês passa por aqui e vê: “Se vendem ovos
frescos”, já sabe que é nesta casa. Ele não vai pensar que é na casa ao lado,
não é mesmo? Certíssimo!, exclamou o comerciante. Então, continuou o pintor,
por que colocar “Se vendem”? Se o freguês potencial lê “Ovos Frescos”, já sabe
que se vende. Ninguém pensaria que o senhor vai abrir uma casa comercial para
alugar ovos ou apenas para expô-los, right? É mesmo!, espantou-se ainda
mais o comerciante. Quanto ao “Frescos”, continuou impávido o pintor,
refletindo melhor não é de boa psicologia usar essa palavra. “Frescos” lembra
sempre a hipótese contrária, a de ovos “velhos”. Não deve nem ter passado pela
cabeça do comprador a ideia de que seus ovos podem ser outra coisa senão
frescos. Portanto, tiremos também o “frescos”! Certíssimo!, berrou o
negociante, agora profundamente entusiasmado com a dialética do pintor. Façamos,
portanto, apenas OVOS. Por favor, desenhe aí só essa palavra, bem bonita, bem
clara: OVOS! Só ovos, ovos tout court, ovos em si mesmos, que se vendam
pela sua pura e simples aparência de ovos, pelo seu inimitável oval! Então
vamos lá, concordou o pintor. Mas antes de começar a usar o pincel, voltou-se
para o negociante e perguntou, preocupado: Mas, me diga aqui, amigo ― pensando
bem, por que vender ovos?
MILLÔR FERNANDES
RIO DE JANEIRO-RJ =
1923-2012
sábado, 21 de dezembro de 2013
Assinar:
Postagens (Atom)