A Comarca, Em Tópicos
A História não é um fato isolado. É uma concatenação de eventos que se compõem entre si e ganham sentido quando vistos em conjunto, já ensinou Evaldo Cabral de Mello. A Confederação do Equador de 1824, por exemplo, quando D. Pedro I desligou do território pernambucano a Comarca do Rio São Francisco, é extensão de uma série de acontecimentos anteriores que formaram o caráter libertário de Pernambuco - o que explica a posição quase suicida do estado (província, naquele período) de pegar em armas para fundar uma nação independente. Pernambuco foi historicamente uma "pedra no sapato" das elites dirigentes, explica Evaldo Cabral, cuja obra é por inteiro centrada nos acontecimentos daqui. "Considero a história pernambucana peculiar em relação ao Brasil", diz ele. "Se você a compara com a de qualquer outro estado brasileiro, fica impressionado com a freqüência de conflitos que tivemos. Fomos a parte do Brasil que originalmente tinha mais acesso à Europa, uma experiência mais cosmopolita, inclusive por causa da dominação holandesa". Quando D. Pedro I fechou a Assembléia Constituinte [que iria fazer a primeira Constituição brasileira], quem protestou? A resposta, por Evaldo Cabral: "Pernambuco foi a única província que se levantou contra a dissolução da Constituinte, episódio em que o Brasil foi empulhado de maneira vergonhosa". Abaixo, como encerramento desta série de reportagens sobre um passado que não deve ser esquecido, a 'concatenação de eventos' sobre a Comarca do Rio São Francisco:
1) As origens Desde o período das capitanias hereditárias as terras que formam o atual oeste baiano ficavam nos limites de Pernambuco. A área estava estabelecida na carta de doação do primeiro donatário da capitania de Pernambuco, Duarte Coelho, em 1534.
2) Surge a Comarca do Rio São
Francisco Em 1810 foi criada a Comarca do Sertão. Como era muito extensa, foi
dividida em 3 de junho de 1820: uma parte continuou sendo "Comarca do
Sertão" e a outra virou a "Comarca do Rio São Francisco", cujos
limites iam do território onde atualmente se encontra Casa Nova até Carinhanha
- o Oeste da Bahia nos dias de hoje. As duas comarcas continuaram pertencendo a
Pernambuco.
3) 1817, a primeira perda de
território A Revolução de 1817 em Pernambuco foi um movimento precursor da
independência (cinco anos antes de ela acontecer). A província criou um governo
autônomo, independente de Portugal. Em represália, o rei D. João VI cometeu a
primeira mutilação do território pernambucano, tirando a então Comarca de
Alagoas. Diferentemente do que ocorreria com a do Rio São Francisco (anexada a
outra província), a Comarca de Alagoas ganharia autonomia, tornando-se
província.
4) 1824, a Confederação do
Equador Em 1823 D. Pedro I dissolveu a Assembléia Nacional Constituinte, que
iria elaborar a primeira constituição do país. A primeira Constituição do
Brasil foi, então, outorgada, em março de 1824. Pernambuco levantou-se contra o
que considerava absolutismo do imperador. Junto com Ceará, Paraíba e Rio Grande
do Norte, criou uma nação independente, a Confederação do Equador. Em 7 de
Julho de 1824 veio o decreto de D. Pedro I, tirando a Comarca do Rio São
Francisco de Pernambuco. Primeiro a anexação foi feita com Minas Gerais, depois
com a Bahia. "O que estão a exigir os insultos de Pernambuco? Um castigo,
e um castigo tal que sirva de exemplo para o futuro", disse o imperador em
27 de julho de 1824.
5) Por que a República não desfez
a Injustiça? Pernambuco foi punido por defender a República, 75 anos antes de
sua proclamação. Quando a monarquia foi derrubada e entramos no regime
republicano, em 1889, era o momento exato para se revindicar o retorno da
Comarca. Mas isso não aconteceu. A representação política pernambucana da época
agiu por pragmatismo, optando por não cobrar a recuperação do território. Como
a situação pós-Proclamação da República estava muito agitada (temia-se
inclusive o retorno do regime monárquico), e o tema suscitaria polêmica, a
opção foi deixar a causa para depois. "A fase do governo encarou tamanhas
e tão ingentes dificuldades, que foi mister pôr à margem muita coisa, para
aliviar a difícil tarefa deferida pelo governo", explicou em discurso no
dia 19 de junho de 1896 o senador por Pernambuco João Barbalho.
6) Há uma tradição de Pernambuco
de reclamar o direito ao território da Comarca
Em 1827 o marquês de Inhambupe, representante de Pernambuco no Senado, apresentou a primeira emenda cobrando a reincorporação da área. Em 1896, o senador João Barbalho. Em 1929 foi o próprio governador de Pernambuco, Estácio Coimbra, que chamou para si a luta. Ingressou com ação no Supremo Tribunal Federal para que a ação não fosse prescrita. Ao longo das décadas outros parlamentares do estado apresentaram projetos reivindicando o território, como Monsenhor Arruda Câmara (1961), Fernando Coelho (1977), José Carlos Vasconcelos (1988) e, por último, Roberto Magalhães (1993).
7) O que fazer, hoje? A
atualidade da questão está em se buscar a reparação histórica de uma injustiça
que foi cometida contra Pernambuco. Como fazer esta reparação é uma discussão
em aberto, com um amplo leque de possibilidades - pode ser via a assinatura de
um documento entre os dois estados, pode ser pela inclusão do tema no currículo
escolar, pela oficialização de uma data para se celebrar o fato. Quanto à
recuperação do território, é possibilidade descartada - não é plausível, hoje,
imaginar que uma área de 173 mil km2 vai de uma hora para outra deixar de ser
de um estado para retornar a outro. 183 anos depois, a punição de D. Pedro I a
Pernambuco só pode ser reparada simbolicamente. Como homenagem a um estado que
pagou sua rebeldia revolucionária com o sangue dos seus habitantes e a perda do
seu território.
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