L Ê D O I V O
MACEIÓ-AL = 1924-2012
A Resposta
Seu nome era Serafim Costa. Mas nome de quem, ou de que? Na cidade pequena , decerto a sua figura deveria ter se cruzado, muitas vezes, com a do menino fardado, de camisa branca e curtas calças azuis extraídas das velhas casimiras paternas. Ele, o comerciante abastado, talvez comendador, não conhecia o garoto. E este jamais poderia ligar o nome à pessoa. Assim, Serafim Costa era apenas um nome — a belíssima sonoridade de um estilhaço de mitologia, uma flor aérea que, em vez de pétalas, possuía sílabas.
Ele morava no Farol, exatamente onde o bonde fazia a última
curva. Os muros brancos, que cercavam o quarteirão, semi-escondiam a casa,
também branca, além do jardim que aparecia entre as grades, e em cujos canteiros
florejavam espessuras e certas musguentas flores amarelas, e um imenso besouro
zoava. A casa era um palacete de dois andares, crivado de sacadas e cegas
janelas, e que parecia desabitada. Possivelmente essa incorrigível falsária, a
Memória, a pintou, sem tir-te nem guar-te, com a sua branca tinta adúltera,
substituindo a verdade nativa, feita de alvorentes azulejos pintalgados de
azul, por alguma caprichosa arquitetura rococó. De qualquer modo, de outro lado
do muro reto, sem dúvida encimado por afiados cacos de garrafas para impedir o
salto dos ladrões, a gente via as copas das mangueiras, cajueiros, palmeiras e
outras árvores sob as quais alguns cães esperavam, impacientes, que a rotina
bocejante do dia se esfarelasse para que eles pudessem latir, na noite raiada
de estrelas, como que lembrando a Serafim Costa — que interromperia por meio
minuto o seu sono tranqüilo e patriarcal — as suas presenças vigilantes.
— Aqui mora Serafim Costa devia ter-me dito meu pai, num
daqueles crepúsculos em que, de bonde, voltávamos para casa; ele com a sua
velha pasta que inexplicavelmente não o acompanhou ao túmulo (o que talvez não
o fizesse ser de pronto reconhecido no Paraíso), e nós ainda guardando nos
ouvidos o bulício vesperal do instante em que, aberta a porta do grupo escolar,
as crianças escoavam para a praça e se perdiam nas escurentas ruas tortuosas.
O palacete branco vulgava riqueza, luxo, secreto esplendor.
Além das portas fechadas, das presumíveis estatuetas de mármore, do aroma das
dálias, do fino palor dos azulejos, das mudas venezianas, havia decerto um
universo de opulência, que a nossa fantasia de meninos pobres mal podia
imaginar. A tarde transcurecia; o portão fechado validava-se como o brasão de
uma existência que, terminados os diálogos inevitáveis de seu ofício de grande
comerciante sempre atarefado e vigilante, suspendia qualquer tráfico com as
mesquinharias diurnas, igual a um navio que, após todo o baixo ritual da
estiva, readquire a sua dignidade perdida sulcando o mar sem amarras.
Era o palácio de Serafim Costa. E o nome, a magia desse
nome que ocupou toda a minha infância, e era o preâmbulo mágico das
encantações, demorava-se em mim, solfejando-se no ar eternamente perfumado pelo
Oceano. Meu pai, então guarda-livros de um armazém de tecidos, conhecia Serafim
Costa, e nos mostrava a sua residência. "Aqui mora Serafim Costa."
Não nos nomeava uma forma definida de casa (sobrado, bangalô, palacete); e
certo aquela moradia, uma das mais luxuosas da pequena cidade, refugia às
denominações irreversíveis. Ignoro se Serafim Costa era alagoano ou um dos
muitos imigrantes portugueses que, estabelecidos em Maceió, enriqueceram em
tecidos ou em secos e molhados e terminaram comendadores — mas em seu palacete,
na exuberância do jardim equatorial, no chão assombrado de árvores
enlanguescidas pelo mormaço, havia algo que era a fusão improfundável dos mais
faustosos elementos nativos com uma substância remota e avoengueira, como que a
reprodução de antiga planta deixada do outro lado do mar e tacitamente reconstruída
pela poupança e ambição do imigrante afortunado. Por isso, meu pai
dizia aqui, querendo assim significar tudo o que era o império de Serafim
Costa: as grades do jardim, os sinuosos canteiros colmeados de folhas e flores,
os calangros e insetos, a água espatifada de uma fonte, os familiares que não
apareciam às janelas, talvez para não confundir a visão de todos os que, como
eu, o imaginavam reinando solitário em sua mansão, sem quinhoar ostensivamente
com ninguém o resultado, de sua vida vitoriosa, feita de zelo e siso.
Embora eu não tivesse conhecido Serafim Costa, tornou-se-me
familiar aos olhos um dos empregados de seu armazém. Era um velho corcunda, de
fiapos brancos na cabeça calva, e devoto. Alguns anos depois, quando já
tínhamos deixado de morar no sítio e passáramos a habitar numa rua do centro da
cidade, estávamos todos, no sótão, assistindo à passagem de uma procissão que
enchia a monotonia da tarde de domingo. Súbito, identifiquei na multidão o
corcunda velho e devoto, e exclamei:
— Olhe o Serafim Costa!
— Olhe o Serafim Costa!
A exclamação fez espécie a meu pai, que se virou para mim,
surpreendido com a notícia. Seu ar era mais do que de dúvida — decerto eu
dissera uma heresia, que reclamava pronta corrigenda ou a aura de uma prova
irretocável. Com o dedo, apontei o velho corcunda que, de casimira preta na
tarde de sol fugidiço, vencia, na aglomeração, os paralelepípedos da rua. Meu
pai reconheceu o empregado de Serafim Costa e exclamou, de bom rosto:
— Não é o Serafim Costa — e achou engraçado que eu
confundisse o empregado humilde e devoto com o poderoso e mitológico patrão.
E assim ele ficou sendo, para mim, sempre e eternamente, um
nome, inatingível figura do ar. Muitas vezes, passeando sozinho pelo sítio ou
junto ao mar lampejante, eu repetia esse nome, despetalava-o na brisa como se
ele fosse um malmequer, juntava de novo as pétalas das sílabas que cantavam
mesmo momentaneamente esquartejadas. Serafim Costa! dizia eu bem alto para que
os costados dos navios pudessem devolver-me, em forma de eco, essa primeira
lição de poesia, essa infindável soletração do absoluto.
Muitos anos depois, desintegrada a infância, e já envolto
numa névoa de estrangeiro, voltei à curva do bonde. Era ali que morava Serafim
Costa — o portão fechado era sinal de que ele estava lá dentro, movendo-se
possivelmente entre frutas maduras, gatos sonolentos e bojudas porcelanas
azuis. Trinta anos se tinham passado desde os dias em que o bonde, na volta da
escola, nos fazia ver a misteriosa morada, o universo branco e verde estriado
de agudas grades negras e manchas róseas. O invisível Serafim Costa já deveria
estar morando, e de há muito, em outra alvacenta morada... Mas parei diante do
portão cerrado, espiei o jardim silencioso, os vasos de azulejos, as escadarias
de mármore, as altas janelas que pareciam sotéias. E chamei: Serafim Costa!
Chamei a quem, a que? E ocorreu o milagre. O nome ficou
suspenso no jardim onde se ocultava uma cobra papa-ovo, depois voou pelos ares,
como um pássaro; chocou-se contra os costados dos cargueiros que, no destempo
hirto, desembarcavam em Maceió os caixotes das mercadorias encomendadas, do
outro lado do Oceano, pelo valimento comercial de Serafim Costa; e,
metamorfoseado em eco, voltou de novo aos meus ouvidos, já agora na soberba
hierarquia de um nome que não precisa mais de figura ou de anedota; e se tornou
para sempre algo sonoro e puro, deslumbrante e enxuto.
E, assim, obtive a resposta.
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