IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO
ARARAQUARA-SP = 1936
O Supremo vazio, o garçom disse que ele podia escolher a mesa. Sentou-se no meio do restaurante, em um lugar que normalmente ninguém escolheria. Pediu meia cerveja e provolone à milanesa para esperar. Ela tinha dito que ia demorar. Mesmo que não tivesse avisado, sabia que ela não chegaria na hora.
Não que se importasse com
pontualidade. O ruim era controlar a ansiedade, queria logo vê-la. De caixas
invisíveis vinha o som de uma canção suave.
Música lounge. Estava na moda.
Ninguém mais pode viver sem um som, não bastam os barulhos que temos à nossa
volta. Ela chegou, não sorriu. Não parecia de mau humor, apenas não sorriu,
como sempre fazia quando se viam.
- Está tão deserto! Deprimente.
- Deve ser os jogos da copa.
- Os jogos são de madrugada.
- As pessoas vêem, à noite,
assistem ao jogo...
Ele não sabia o que dizer,
ficava com a boca seca, desconcertado.
- Por que viemos aqui?
- Aqui começou.
- E nesta mesa! Por que
insiste?
- Não estou insistindo em
nada. Esta mesa, outra. Que diferença faz?
- Você sabe.
- Foi instintivo. Sem querer.
- É sempre sem querer,
querendo. Sabe que é ruim para mim. Dói.
Ela também pediu cerveja,
recusou o queijo, estava fazendo regime.
- Faz uma semana que estou
tomando sopas. São horríveis, mas estou gorda demais.
- Nem um pouco, você é que
pensa!
- Não estou cabendo em nenhuma
roupa.
- Olhando assim, não parece.
- Faz tempo que você não me vê
nua. Se te mostrasse a barriga! Um horror!
Fui à praia, fiquei sentada ao
sol. Quando me levantei, vi que estava toda listada, a barriga tinha pequenas
dobras, o sol queimou por fora delas.
- Não exagera!
- Quando não entro em nenhuma
roupa, fico deprimida. Aliás, penso em fazer uma pequena lipo. Para tirar um
pouco do traseiro, também.
- Nem fale em lipo. Viu o que
anda acontecendo? As calamidades dos plásticos?
- Não exagere. Tem plásticos e
plásticos.
- Estou usando nosso perfume,
percebeu?
- Não... E não é mais nosso
perfume... é o seu...
Claro - ele pensou - que ela
tinha percebido, afinal ele tinha se encharcado. Era dura na queda. Olhou para
as mãos dela. Um sinal. Estava sem o anel, presente de aniversário, um ano
atrás. Ela tinha escolhido, ele mandara fazer. Tinha ficado pronto no dia do
aniversário, à noite, precisara sair correndo, não encontrara táxi, o carro
estava no rodízio, caminhara quadras e quadras, chegara suando, fazia calor.
Mas quando entregou, valeu a pena, ela colocou na hora, nunca mais tirou.
Agora, não estava lá. Mas não podia perguntar, ela ia sorrir, perguntar:
"Tenho motivo para usar?"
Ele entregou o pequeno pacote.
- Um novo volume da coleção
policial.
- Sabia?
- Vi na livraria quando vinha
para cá. Quando dei com o pacote sobre a mesa, entendi. Você continua
previsível.
- É policial. De autor brasileiro.
- É policial. De autor brasileiro.
- Brasileiro? São chatos!
- Quer...?
- Claro!
Ela sorriu, brevemente. Sabia
que o "chatos" ia provocá-lo, mas surpreendeu-se, ele sorriu de
volta.
- Tem razão.
- Tem razão.
- Por que você insiste?
- No quê?
- Em continuar a me mandar
coisas, escrever bilhetes, convidar para almoçar.
- Pensei que podíamos
continuar amigos.
- A quem está tentando
enganar?
- Você mesma disse: vamos ser
amigos!
- Mas pedi para não continuar
com os presentes, os bilhetes. Isso foi o passado. Ponha na cabeça. O que vocês
homens pretendem?
- Não pensa em mim?
- Penso na minha vida que
precisa continuar.
- E esquecer tudo?
- Não dá para esquecer. Você
virou uma sombra, me segue por toda parte. Sou obrigada a fingir que nada
aconteceu. Ou não consigo viver, retomar meu ritmo.
- Consegue?
- Se a gente não passa uma
borracha, a vida pára!
- Está sozinha?
- Olha a insistência!
- Só para saber!
- De que adianta?
- Somos amigos ou não?
- Digamos... que somos
conhecidos.
- Eu te chateio muito? Irrito?
Encho o saco?
- Não, não... Mas me feriu...
cortou fundo e isso custa a passar!
A cerveja tinha esquentado, o
provolone estava borrachudo, gorduroso. Ele começou a suar. Talvez não tivesse
sido boa idéia o almoço.
- O perfume. Tenta tudo, não?
- Você gostava.
- Gosto... digo, gostava.
Mudei.
- Não foi proposital. Uso
sempre este.
- Não usa, não.
- Quer ir embora?
- Não viemos almoçar? Estou
com fome.
Ele chamou o garçom, ela pediu
picadinho. Como no primeiro dia que tinham vindo ali, naquela mesma mesa. Seria
de propósito ou acaso? Ele tentava ver em cada gesto dela um gesto de boa
vontade, uma abertura, indício favorável.
No entanto, a comida veio, ela
comeu com vontade, sem olhar para ele, observando o restaurante que continuava
vazio. Ele começou a beliscar o suflê de espinafre, especialidade da casa.
Saboroso. Quando percebeu, tinha comido tudo, sentiu-se melhor. Olhou para ela.
Achou-a mais bonita que antes, talvez estivesse bem. Teria encontrado alguém?
Ela jamais diria, responderia com uma ironia. Não quis sobremesa, estava mesmo
levando a sério o regime. Não quis café. Levantou-se antes que ele pedisse a
conta.
- Incomoda-se? Preciso visitar um cliente.
- Incomoda-se? Preciso visitar um cliente.
- Como vai indo?
- Médio. Está tudo muito
difícil. Não acha?
- Não tem dinheiro... Quem tem
não quer investir em nada, tem medo, espera a eleição.
- As pessoas estão com medo...
Não querem investir em nada... Nem no coração!
Ele tentou tocar os lábios
dela, sentir o hálito quente que o excitava sempre. Não conseguiu, ela virou o
rosto, rapidamente, ainda que não ostensivamente, riu. E se foi. Ele colocou um
provolone na boca, mascou como chiclete, tinha gosto de nada.
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