sábado, 9 de novembro de 2013

CONTO

PLÍNIO MARCOS
SANTOS-SP, 1935-1999

O Aniversário


O Zé Mané levava uma vida de lascar. Nem de leve pegava maré mansa. Seu trampo era pesado paca. Das oito da matina às seis da tarde debaixo de sacaria. Uma puxeta de entortar qualquer patuá. E o salário, claro que era o mínimo. Daí, já viu. Com a vida custando os olhos da cara, o Zé Mané mal podia pegar uma gororoba. Pagava oitenta jiripocas por uma vaga num quarto com mais três parceiros para ter onde encostar O cadáver. E o que sobrava era pra comer. Mas sobrava tão pouco. Na verdade, o Zé Mané só rangava todos os dias porque o Seu Joaquim Portuga, dono do boteco do pedaço, era um chapa ponta-firme e fiava o sortido pra curriola a perigo. E essa era a sorte selada do Zé Mané. Uma zorra sentida. Apesar de ter nascido com o urubu plantado no seu destino, o Zé Mané, quando fazia aniversário, gostava de se embandeirar, comemorar de se esbaldar e os cambaus. Sempre fora assim. Desde pequeno, considerava o dia do seu aniversário um dia sagrado. Não trabalhava nesse dia, nem nada. Só enchia a caveira de cachaça. E, quando fez trinta anos, não deu outra coisa. O Zé Mané já amanheceu ligado. Logo cedo, deu um alô pros companheiros de quarto:
— Tou fazendo anos hoje.
A turma fez a milonga:
— Boa! Parabéns!
— Quer dizer que hoje tu paga as manguaças?
— Tem que pagar. Afinal, o Zé não faz anos todo dia.
E o Zé Mané não escamou:
— Hoje é comigo mesmo. Nem vou pro batente.
Os parceiros não duvidaram. Mas quiseram saber da situação. O Ditinho Preto, mais chegado ao Zé, tomou a liberdade:
— Tu tá com grana pra garantir, Zé?
Naturalmente, o aniversariante não tinha um tostão no bolso. Mas nem se tocou. Confiando no Seu Joaquim Portuga, tirou de letra:
- Eu sei de mim. E, se mando ver, é porque garanto. Ô meu, tou fazendo trinta anos. Não sou nenhum moleque!
Encabulado, o Ditinho se desculpou:
— Não, eu sei. Mas é que nós, quando se dana a beber, bebe mesmo.
Todos riram. E o Zé Mané fez o apontamento:
— Sete e pouco tamos lá no boteco do Seu Quim.
Cheios de esperança na farra, os companheiros do Zé Mané se arrancaram pro trabalho. O aniversariante ficou na cama. No seu grande dia, ele não tinha hora pra acordar. Mas, pro encontro combinado, ele não se atrasou. Às sete em ponto piou no boteco do Seu Quim. Não teve que esperar muito pelos amigos. Eles logo baixaram na parada. E chegaram fazendo zoada. Pique-pique, parabéns pra você, hip-hurra e os cambaus. A patota toda presente ficou por dentro do assunto. Todo mundo abraçou o Zé Mané e ele espumou de alegria. Não maneirou. Convidou todos pra beber. A moçada não fez cerimônia com o otário. Se serviram. De saída, Seu Joaquim abriu duas dúzias de cerveja. E teve muito pilantra que ainda pediu pinga pra quebrar o gelo da cerveja. Sem conferir, o Zé Mané autorizava. Quando o dono do boteco vacilava, o loque berrava:
— Hoje é festa, Seu Quim. Bota aí, que não tem chibu. Tou fazendo trinta anos.
Com essas e outras, todo o gango se empapuçou. Já tinha nego cercando frango quando um gaiato resolveu tirar sarro com a fuça do dono do boteco. Sabendo que o homem era bronqueado com anedota de português, o pilantroso atacou na ferida:
— Escuta aqui, Zé Mané. Tu sabe que falaram pra um cutruco que ele tinha que pagar Imposto de Renda na fonte e o labrego acabou morrendo afogado?
A curriola estourou de rir. E conversa puxa conversa. Cada um sacou um esculacho em português. O Seu Joaquim azedou. Como não era homem de comer enrolado e não queria briga, resolveu acabar com a festa. E deu o aviso:
— Bom, já é tarde. Eu vou fechar o bar. Não sirvo mais nada, que já tão todos de pé queimado. Seu Zé Mané, o senhor que é o dono da conta, me faz favor de acertar e ir contar piada de português em outro canto. Aqui não quero isso.
Teve estrilo. Quás-quás-quás grosso. Porém, como era mais de meia-noite, o Zé Mané deu uma pá de cal na festa. Olhou no relógio e acalmou os ânimos:
— Acabou a festa. Meu aniversário foi ontem.
A patota se conformou. Já iam se mandando quando o Seu Joaquim deu o arrocho:
— E a conta? Quem paga?
O Zé Mané não balançou pra responder:
— Pendura.
Não prestou. O Seu Joaquim virou bicho. Já estava invocado com as piadas. Com o devo do Zé Mané, então, se picou de raiva. E deu a prensa:
— Não tem papo. Vai pagar já.
Pro Zé, que não tinha dinheiro, a novidade valeu por uma paulada. E deu a volta em tom bravo:
— Pendura, já falei. Sempre pendurou, por que vai fazer onda agora?
Teve início um bate-boca:
— Pendurei os sortidos.
— E eu sempre paguei.
— Mas bebida eu não vendo fiado.
— Agora que tu avisa?
— Tu já devia saber que não vendo bebida fiado pra vagabundo nenhum.
— Vagabundo é a mãe.
Xingar a mãe é sempre início de confusão. O português passou a mão num cacete, pulou o balcão e cobriu o Zé Mané de pancada. Ninguém se meteu. O Zé, bebum, mal podia com ele mesmo e apanhou coisa que preste. Ficou estarrado no chão quase morto. E só com muito custo impediram o português de mandar o Zé falar com Deus. O Ditinho Preto e os outros companheiros de quarto guindaram o Zé Mané. E a bagunça acabou aí.
No dia seguinte, Seu Joaquim estava firme no boteco, atendendo a freguesia, quando o Ditinho Preto se apresentou falando macio:
— Seu Joaquim, o Zé Mané tá com vergonha do que aconteceu ontem e pediu pro senhor ir ali na esquina, que ele quer acertar as contas com o senhor.
O português entrou no grupo. Até bochichou:
— O Zé é bom rapaz. Ontem ele estava bebido. Hoje ele acerta e fica tudo por isso mesmo. Vamos lá.
Na esquina, o português encontrou o Zé Mané. Mal viu o loque e manjou qual era o acerto. Quis correr, mas não deu. O Zé Mané meteu uma lapa de faca que não tinha mais tamanho na barriga do Seu Joaquim. O homem ficou embarcado. Mas, antes de morrer, ainda escutou o recado do Zé:
— Assim tu aprende a respeitar um pinta que faz aniversário.




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