sábado, 12 de outubro de 2013

CRÔNICA

AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA
BELO HORIZONTE-MG  =  1937


Desmascarar Os Mascarados


Os mascarados foram, enfim, desmascarados. A imprensa cansou deles, até porque foi alvo irracional de sua estupidez. As pessoas crédulas e de bons sentimentos que saíram em protestos pelas ruas, não querem mais saber deles. Efetivou-se a operação isolamento. Por que uma pessoa usa máscara? Hipóteses conhecidas: 1) para brincar no carnaval 2) nos bailes à fantasia 3) para cometer um assalto ou crime 1-1.No carnaval a máscara, a rigor, não esconde, ao contrário, revela um sonho, uma duplicidade. Por isto se diz que a pessoa está fantasiada. Mas quando chega a hora da verdadea pessoa tira a máscara, se entrega. Quarta feira de cinzas é para isto. 2..1 Os bailes à fantasia são uma brincadeira, porque é fácil reconhecer os mascarados. As pessoas estão mais interessadas no luxo e na exibição, na sedução do outro. E as batalhas de confeteeram brincadeiras ingênuas. 3.1.Nos filmes (ou na realidade) o mascarado que assalta não quer ser reconhecido.Ele não está brincando. Assalta e pode matar ou morrer. Há outras variantes. Os movimentos de rua que começaram em junho embaralharam as coisas. É conveniente esclarecer esses termos: revolta, rebelião, revolução, e claro, carnaval. Exemplo: todos temos razões de estar revoltados. Não é exclusividade brasileira. Há até revolta social e metafisica, Albert Camus escreveu o romanceO homem revoltado. Os hippieseram revoltados. Diria que grande parte dos que foram às ruas eram pessoas revoltadas. Queixavam-se do transporte, da saúde pública, da corrupcão. Eram reclamações, como se dizia no tempo da ditadura: amplas, gerais, irrestritas. O segundo degrau depois da revolta é a rebelião. A rebelião faz barulho. É um grito de desacordo, pode ocorrer num quartel, num campus, numa fábrica. Mas a rebelião surge e desaparece dando o seu recado. Já a revolução é a soma da revolta e da rebelião. A revolução quer por as coisas de cabeça para baixo, por isto rolam cabeças, tronco e membros. Quem estava na margem vem pro centro, quem estava por baixo fica em cima. Revoluções são utopias e sangrentas. As manifestações de rua que estouraram em junho contra o aumento das tarifas foram uma revolta e uma rebelião. A multidão desgarrou-se dos partidos e das lideranças costumeiras. Aí surpreendentemente surgiram os baderneiros os vândalosos black bloce de certa maneira os ninja. Não adiantava um revoltoso dizer a um baderneiro: pára de quebrar a coisa pública! Essa é uma manfestação pacífica! Uma conhecida que foi à manifestação ficou horrorizada, aturdida, quando começaram a quebrar a loja do seu irmão. O mascarado - a que chamam de baderneiro, vandalo black bloctem uma carateristicas própria além da máscara. São homens. Jovens, parecem saídos de academias. É a testosterona desgovernada. Se dessem o governo para eles, seria o caos, porque são o caos em movimento. Aliás, não querem o governo, repito: são testosterona desgovernada. Reparem que não há mulher nesse conjunto. O pessoal da revolta e da rebelião custou a sacar quem eram os baderneiros. A imprensa mesmo ficou em cima do muro. Levou dois meses para ser mais enfática. Custaram a entender a diferença entre permissividade e democracia. E os velhos revoltados e revolucionários dos anos 60, enfim, constataram que esses grupos de baderneiros eram fascistas e autoritários e não tinham projeto algum. Ah, sim, entre os heróis de quadrinho há alguns mascarados. Mas não quebram vitrinas e nem levam para casa objetos roubados.

Estado de Minas.Correi Braziliense- 15.09.2013




MÚCIO LEÃO
RECIFE-PE  =  1898 / 1969
A  Rede

A nossa venerável rede já aparece no primeiro documento relativo ao Brasil. Lá está na carta de Pero Vaz de Caminha. Vão os conquistadores brancos visitar a aldeia dos índios, e eis como Caminha a descreve: "Segundo eles diziam, foram bem uma légua e meia a uma povoação de casas, em que haveria nove ou dez casas, as quais diziam que eram tão compridas cada uma como esta nau capitânea; e eram de madeira, e de ilhargas de tábuas, e cobertas com palha de razoada altura, e todas em uma só casa, sem nenhum repartimento; tinham de dentro de muitos esteios e de esteio a esteio, uma rede atada pelos cabos em cada esteio, altas, em que dormiam; e debaixo, para se agüentarem, faziam seus fogos."
Objeto de uso imprescindível para o índio, foi logo a rede um objeto também imprescindível para o branco, que tão bem procura assimilar tantos hábitos selvagens. Em São Paulo por exemplo, a difusão da rede foi imensa. Todo mundo só dormia em rede. Sérgio Buarque de Holanda alude a uma determinada cama que existiu em São Paulo no século XVIII: a de Gonçalo Pires. Mas acrescenta: "Em verdade, não era essa cama a única existente na época em São Paulo. Existia ainda a de Gaspar Cunha e de sua mulher Isabel Sobrinha."
Como em São Paulo, a rede é, no Nordeste, um elemento insubstituível de vida. Segundo Gardner, a rede é, à noite, a cama preferida por ser muito fresca — o que ele, que durante três anos não dormiu em outra coisa, pode atestar; e é durante o dia, o substituto da cadeira ou do sofá...
Dormida de índios, a rede passa, com efeito, a ser dormida de brancos. E como os brancos a ela se adaptam, como a amam, como a adoram! Há, nesse sentido, um depoimento curioso — o do padre Rui Pereira, o amabilíssimo jesuíta, aquele doce homem para o qual o Brasil era o paraíso na terra. Ele expressava a sua infinita felicidade de viver no Brasil, e meditava: "Dir-me-ão; que vida pode ter um homem dormindo em uma rede, pendurado no ar como rédea de uvas? Digo que é isto cá, tão grande coisa que, tendo eu cama de colchões, e aconselhando-me o médico que dormisse na rede, a achei tal que nunca mais pude ver cama, nem descansar noite que nela não dormisse, em comparação do descanso que nas redes acho."
Ainda hoje será assim. Se o Nordeste, em geral, adotou a cama como um móvel de uso constante — nem por isso baniu a rede. E há regiões nordestinas, sobretudo no interior, em que a rede continua a ser durante a noite a cama em que se dorme e durante o dia o sofá ou a cadeira em que se repousa.
Além do lugar de dormir, a rede era também veículo de transporte. Ainda hoje no interior será usada — ora para transportes de enfermos ou até de mortas, como a vimos pessoalmente tanta vez, em localidades pernambucanas; ora para conduzir pessoas importantes, que não desejam cansar os pés.
Koster, que tanto se divertiu com as coisas brasileiras, conta um episódio curioso, ligado a rede como meio de transporte. Achava-se ele enfermo no engenho, e tendo de ir a Recife, teve de recorrer a uma rede, que era conduzida por negros. Ao atravessarem Olinda, uma preta perguntou se ali ia algum morto. Respondeu um dos carregadores: "Não é um morto que levamos aqui: é o diabo, que vai dentro da rede." Depois voltou-se para Koster e perguntou: "Não é mesmo, patrão?". Ao que Koster respondeu: "É sim." A boa mulher continuou seu caminho, benzendo-se e excomungando: "Ave Maria! Deus vos defenda!"
Motivo de constante saudade para os nortistas ou nordestinos que emigram para o Sul, para os sulistas que sairam do país, a rede é uma fonte de inspiração do brasileiro. Lá está celebrada na emoliente e quente poesia de Gonçalves Crespo. Lá está nas deliciosas trovas de Adelmar Tavares.



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