LYGIA FAGUNDES TELLES
SÃO PAULO-SP = 1923
Então, Adeus!
Isto aconteceu na Bahia, numa tarde em que eu
visitava a mais antiga e arruinada igreja que encontrei por lá, perdida na
última rua do último bairro. Aproximou-se de mim um padre velhinho, mas tão
velhinho, tão velhinho que mais parecia feito de cinza, de teia, de bruma, de
sopro do que de carne e osso. Aproximou-se e tocou o meu ombro.
- Vejo que aprecia essas imagens antigas -
sussurrou-me com sua voz débil. E descerrando os lábios murchos num sorriso
amável: - Tenho na sacristia algumas preciosidades. Quer vê-las?
Solícito e trêmulo, foi-me mostrando os pequenos
tesouros da sua igreja: um mural de cores remotas e tênues como as de um pobre
véu esgarçado na distância; uma Nossa Senhora de mãos carunchadas e grandes
olhos cheios de lágrimas; dois anjos tocheiros que teriam sido esculpidos por
Aleijadinho, pois dele tinham a inconfundível marca nos traços dos rostos
severos e nobres, de narizes já carcomidos... Mostrou-me todas as raridades,
tão velhas e tão gastas quanto ele próprio. Em seguida, desvanecido com o
interesse que demonstrei por tudo, acompanhou-me cheio de gratidão até a porta.
- Volte sempre - pediu-me.
- Impossível - eu disse. - Não moro aqui, mas, em
todo o caso, quem sabe um dia... - acrescentei sem nenhuma esperança.
- E então, até logo! - ele murmurou descerrando os
lábios num sorriso que me pareceu melancólico como o destroço de um naufrágio.
Olhei-o. Sob a luz azulada do crepúsculo, aquela
face branca e transparente era de tamanha fragilidade, que cheguei a me
comover. Até logo?... "Então, adeus?", ele deveria ter dito. Eu ia
embarcar para o Rio no dia seguinte e não tinha nenhuma idéia de voltar tão
cedo à Bahia. E mesmo que voltasse, encontraria ainda de pé aquela igrejinha arruinada
que achei por acaso em meio das minhas andanças? E mesmo que desse de novo com
ela, encontraria vivo aquele ser tão velhinho que mais parecia um antigo morto
esquecido de partir?!...
Ouça, leitor: tenho poucas certezas nesta incerta
vida, tão poucas que poderia enumerá-las nesta breve linha. Porém, uma certeza
eu tive naquele instante, a mais absoluta das certezas: "Jamais o
verei." Apertei-lhe a mão, que tinha a mesma frialdade seca da morte.
- Até logo! - eu disse cheia de enternecimento pelo
seu ingênuo otimismo.
Afastei-me e de longe ainda o vi, imóvel no topo da
escadaria. A brisa agitava-lhe os cabelos ralos e murchos como uma mancha
prestes a extinguir-se. "Então, adeus!", pensei comovida ao
acenar-lhe pela última vez. "Adeus."
Nesta mesma noite houve o clássico jantar de
despedida em casa de um casal amigo. E, em meio de um grupo, eu já me
encaminhava para a mesa, quando de repente alguém tocou o meu ombro, um toque
muito leve, mais parecia o roçar de uma folha seca.
Voltei-me. Diante de mim, o padre velhinho sorria.
- Boa-noite!
Fiquei muda. Ali estava aquele de quem horas antes
eu me despedira para sempre.
- Que coincidência... - balbuciei afinal. Foi a
única habilidade que me ocorreu dizer. - Eu não esperava vê-lo... tão cedo.
Ele sorria, sorria sempre. E desta vez achei que
aquele sorriso era mais malicioso do que melancólico. Era como se ele tivesse
adivinhado meu pensamento quando nos despedimos na igreja e agora então, de um
certo modo desafiante, estivesse a divertir-me com a minha surpresa. "Eu
não disse até logo?", os olhinhos enevoados pareciam perguntar com
ironia.
Durante o jantar ruidoso e calorento, lembrei-me de
Kipling. "Sim, grande e estranho é o mundo. Mas principalmente estranho...
Meu vizinho da esquerda quis saber entre duas
garfadas:
- Então a senhora vai mesmo nos deixar amanhã?
Olhei para a bolsa que tinha no regaço e dentro da
qual já estava minha passagem de volta com a data do dia seguinte. E sorri para
o velhinho lá na ponta da mesa.
- Ah, não sei... Antes eu sabia, mas agora já não
sei.
MÁRIO SETTE
RECIFE-PE
= 1886-1950
Era
na época mais agitada da abolição da escravatura.
Todos
os brasileiros, e os pernambucanos por excelência, se envergonhavam da
existência do cativeiro em seu país, procurando cada um prestar seus esforços
em favor da grande obra de libertação desses pobres negros, tão dóceis, tão
laboriosos, tão bons!
Uns
abolicionistas faziam discursos na praça pública, outros escreviam nos
jornais, muitos davam dinheiro para ajudar na alforria de alguns escravos ou
facilitavam a fuga de outros.
Os
que fugiam, em regra, embarcavam às escondidas para o Ceará, que foi a
primeira província do Brasil a dar liberdade aos escravos.
E
a bela cruzada tomava quase um aspecto de religião. Somente os interessados defendiam
a escravidão.
No
Recife, entre tantas outras, havia um par de almas generosas e estóicas,
devotado ao extremo a essa humana causa; era o doutor José Mariano, político
muito querido do povo, e sua esposa dona Olegarinha.
Residiam
em um sobrado no Poço da Panela, à margem do Capibaribe, e, ali, se
refugiavam os escravos evadidos dos engenhos, das fazendas, dos sítios,
certos de encontrar segurança, amparo e carinho.
Quase
não havia noite em que, sorrateiramente, um pobre cativo não chegasse ao Poço
da Panela, por vezes maltratado, o corpo sangrando de castigos, as mãos
inchadas de bolos, os dentes arrancados à força; uma lástima, uma tristeza!
Dona
Olegarinha, ela própria, tratava os ferimentos, consolava os infortunados,
dava-lhes alimentos e vestuários.
José
Mariano, por seu lado, andava pregando nas ruas em favor da abolição e a
palavra vibrante ia fazendo adeptos.
Por
fim, estando o palacete do Poço da Panela muito cheio de refugiados, José
Mariano e sua esposa resolveram embarcar alguns dos seus protegidos para o
Ceará.
Todavia,
mostrava-se bastante arriscada essa viagem. A polícia, a mando do governo,
vivia na beira do cais, espreitando as embarcações, no intuito de aprisionar
os escravos que fugissem, missão essa que o exército recusara quando o
quiseram disso encarregar.
José
Mariano, porém, era astucioso. Conseguiu a colaboração dos barcaceiros, e,
assim, as barcaças subiam o Capibaribe até o Poço, a pretexto de carregar
capim. Ali, à noitinha, os escravos entravam nas embarcações, escondiam-se
nos porões, e por cima deles estendiam os feixes de capim.
De
madrugada as barcaças desciam o rio. Passavam diante dos soldados, sem causar
desconfianças, serenamente.
E
mal dobravam a boca da barra abrindo todas as suas velas brancas, cortando
airosamente o mar, lá se iam para longe.
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sábado, 12 de outubro de 2013
CRÔNICAS
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