sábado, 12 de outubro de 2013

CRÔNICAS

LYGIA FAGUNDES TELLES
SÃO PAULO-SP  =  1923

Então, Adeus!



Isto aconteceu na Bahia, numa tarde em que eu visitava a mais antiga e arruinada igreja que encontrei por lá, perdida na última rua do último bairro. Aproximou-se de mim um padre velhinho, mas tão velhinho, tão velhinho que mais parecia feito de cinza, de teia, de bruma, de sopro do que de carne e osso. Aproximou-se e tocou o meu ombro.
- Vejo que aprecia essas imagens antigas - sussurrou-me com sua voz débil. E descerrando os lábios murchos num sorriso amável: - Tenho na sacristia algumas preciosidades. Quer vê-las?
Solícito e trêmulo, foi-me mostrando os pequenos tesouros da sua igreja: um mural de cores remotas e tênues como as de um pobre véu esgarçado na distância; uma Nossa Senhora de mãos carunchadas e grandes olhos cheios de lágrimas; dois anjos tocheiros que teriam sido esculpidos por Aleijadinho, pois dele tinham a inconfundível marca nos traços dos rostos severos e nobres, de narizes já carcomidos... Mostrou-me todas as raridades, tão velhas e tão gastas quanto ele próprio. Em seguida, desvanecido com o interesse que demonstrei por tudo, acompanhou-me cheio de gratidão até a porta.
- Volte sempre - pediu-me.
- Impossível - eu disse. - Não moro aqui, mas, em todo o caso, quem sabe um dia... - acrescentei sem nenhuma esperança.
- E então, até logo! - ele murmurou descerrando os lábios num sorriso que me pareceu melancólico como o destroço de um naufrágio.
Olhei-o. Sob a luz azulada do crepúsculo, aquela face branca e transparente era de tamanha fragilidade, que cheguei a me comover. Até logo?... "Então, adeus?", ele deveria ter dito. Eu ia embarcar para o Rio no dia seguinte e não tinha nenhuma idéia de voltar tão cedo à Bahia. E mesmo que voltasse, encontraria ainda de pé aquela igrejinha arruinada que achei por acaso em meio das minhas andanças? E mesmo que desse de novo com ela, encontraria vivo aquele ser tão velhinho que mais parecia um antigo morto esquecido de partir?!...
Ouça, leitor: tenho poucas certezas nesta incerta vida, tão poucas que poderia enumerá-las nesta breve linha. Porém, uma certeza eu tive naquele instante, a mais absoluta das certezas: "Jamais o verei." Apertei-lhe a mão, que tinha a mesma frialdade seca da morte.
- Até logo! - eu disse cheia de enternecimento pelo seu ingênuo otimismo.
Afastei-me e de longe ainda o vi, imóvel no topo da escadaria. A brisa agitava-lhe os cabelos ralos e murchos como uma mancha prestes a extinguir-se. "Então, adeus!", pensei comovida ao acenar-lhe pela última vez. "Adeus."
Nesta mesma noite houve o clássico jantar de despedida em casa de um casal amigo. E, em meio de um grupo, eu já me encaminhava para a mesa, quando de repente alguém tocou o meu ombro, um toque muito leve, mais parecia o roçar de uma folha seca.
Voltei-me. Diante de mim, o padre velhinho sorria.
- Boa-noite!
Fiquei muda. Ali estava aquele de quem horas antes eu me despedira para sempre.
- Que coincidência... - balbuciei afinal. Foi a única habilidade que me ocorreu dizer. - Eu não esperava vê-lo... tão cedo.
Ele sorria, sorria sempre. E desta vez achei que aquele sorriso era mais malicioso do que melancólico. Era como se ele tivesse adivinhado meu pensamento quando nos despedimos na igreja e agora então, de um certo modo desafiante, estivesse a divertir-me com a minha surpresa. "Eu não disse até logo?", os olhinhos enevoados pareciam perguntar com ironia.
Durante o jantar ruidoso e calorento, lembrei-me de Kipling. "Sim, grande e estranho é o mundo. Mas principalmente estranho...
Meu vizinho da esquerda quis saber entre duas garfadas:
- Então a senhora vai mesmo nos deixar amanhã?
Olhei para a bolsa que tinha no regaço e dentro da qual já estava minha passagem de volta com a data do dia seguinte. E sorri para o velhinho lá na ponta da mesa.
- Ah, não sei... Antes eu sabia, mas agora já não sei.






MÁRIO SETTE
RECIFE-PE  =  1886-1950

As  Barcaças  De  Capim



Era na época mais agitada da abolição da escravatura.
Todos os brasileiros, e os pernambucanos por excelência, se envergonhavam da existência do cativeiro em seu país, procurando cada um prestar seus esforços em favor da grande obra de libertação desses pobres negros, tão dóceis, tão laboriosos, tão bons!
Uns abolicionistas faziam discursos na praça pública, outros escreviam nos jornais, muitos davam dinheiro para ajudar na alforria de alguns escravos ou facilitavam a fuga de outros.
Os que fugiam, em regra, embarcavam às escondidas para o Ceará, que foi a primeira província do Brasil a dar liberdade aos escravos.
E a bela cruzada tomava quase um aspecto de religião. Somente os interessados defendiam a escravidão.
No Recife, entre tantas outras, havia um par de almas generosas e estóicas, devotado ao extremo a essa humana causa; era o doutor José Mariano, político muito querido do povo, e sua esposa dona Olegarinha.
Residiam em um sobrado no Poço da Panela, à margem do Capibaribe, e, ali, se refugiavam os escravos evadidos dos engenhos, das fazendas, dos sítios, certos de encontrar segurança, amparo e carinho.
Quase não havia noite em que, sorrateiramente, um pobre cativo não chegasse ao Poço da Panela, por vezes maltratado, o corpo sangrando de castigos, as mãos inchadas de bolos, os dentes arrancados à força; uma lástima, uma tristeza!
Dona Olegarinha, ela própria, tratava os ferimentos, consolava os infortunados, dava-lhes alimentos e vestuários.
José Mariano, por seu lado, andava pregando nas ruas em favor da abolição e a palavra vibrante ia fazendo adeptos.
Por fim, estando o palacete do Poço da Panela muito cheio de refugiados, José Mariano e sua esposa resolveram embarcar alguns dos seus protegidos para o Ceará.
Todavia, mostrava-se bastante arriscada essa viagem. A polícia, a mando do governo, vivia na beira do cais, espreitando as embarcações, no intuito de aprisionar os escravos que fugissem, missão essa que o exército recusara quando o quiseram disso encarregar.
José Mariano, porém, era astucioso. Conseguiu a colaboração dos barcaceiros, e, assim, as barcaças subiam o Capibaribe até o Poço, a pretexto de carregar capim. Ali, à noitinha, os escravos entravam nas embarcações, escondiam-se nos porões, e por cima deles estendiam os feixes de capim.
De madrugada as barcaças desciam o rio. Passavam diante dos soldados, sem causar desconfianças, serenamente.
E mal dobravam a boca da barra abrindo todas as suas velas brancas, cortando airosamente o mar, lá se iam para longe.



(Sette, Mário. Terra pernambucana)


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