RUBEM ALVES
BOA
ESPERANÇA-MG = 1933
AS DUAS ÉTICAS: a
ética que brota da contemplação das estrelas perfeitas, imutáveis e mortas, a que
os filósofos dão o nome de ética de princípios, e a ética que brota da
contemplação dos jardins imperfeitos e mutáveis, mas vivos -a que os filósofos
dão o nome de ética contextual.
Os jardineiros não
olham para as estrelas. Eles nada sabem sobre as estrelas que alguns dizem já
ter visto por revelação dos deuses. Como os homens comuns não vêem essas
estrelas, eles têm de acreditar na palavra dos que dizem já as ter visto longe,
muito longe...
Os jardineiros só
acreditam no que os seus olhos vêem. Pensam a partir da experiência: pegam a
terra com as mãos e a cheiram...
Vou aplicar a
metáfora a uma situação concreta. A mulher está com câncer em estado avançado.
É certo que ela morrerá. Ela suspeita disso e tem medo.
O médico vai
visitá-la. Olhando, do fundo do seu medo, no fundo dos olhos do médico ela
pergunta: "Doutor, será que eu escapo desta?"
Está configurada uma
situação ética. Que é que o médico vai dizer?
Se o médico for um
adepto da ética estelar de princípios, a resposta será simples. Ele não terá que
decidir ou escolher. O princípio é claro: dizer a verdade sempre. A enferma
perguntou. A resposta terá de ser a verdade. E ele, então, responderá:
"Não, a senhora não escapará desta. A senhora vai morrer..."
Respondeu segundo um princípio invariável para todas as situações.
A lealdade a um
princípio o livra de um pensamento perturbador: o que a verdade irá fazer com o
corpo e a alma daquela mulher? O princípio, sendo absoluto, não leva em
consideração o potencial destruidor da verdade.
Mas, se for um jardineiro,
ele não se lembrará de nenhum princípio. Ele só pensará nos olhos suplicantes
daquela mulher. Pensará que a sua palavra terá que produzir a bondade. E ele se
perguntará: "Que palavra eu posso dizer que, não sendo um engano -"A
senhora breve estará curada...'-, cuidará da mulher como se a palavra fosse um
colo que acolhe uma criança?" E ele dirá:
"Você me faz
essa pergunta porque você está com medo de morrer. Também tenho medo de
morrer..." Aí, então, os dois conversarão longamente -como se estivessem
de mãos dadas ... - sobre a morte que os dois haverão de enfrentar. Como
sugeriu o apóstolo Paulo, a verdade está subordinada à bondade.
Pela ética de
princípios, o uso da camisinha, a pesquisa das células-tronco, o aborto de
fetos sem cérebro, o divórcio, a eutanásia são questões resolvidas que não
requerem decisões: os princípios universais os proíbem.
Mas a ética
contextual nos obriga a fazer perguntas sobre o bem ou o mal que uma ação irá
criar. O uso da camisinha contribui para diminuir a incidência da Aids? As
pesquisas com células-tronco contribuem para trazer a cura para uma infinidade
de doenças? O aborto de um feto sem cérebro contribuirá para diminuir a dor de
uma mulher? O divórcio contribuirá para que homens e mulheres possam recomeçar
suas vidas afetivas? A eutanásia pode ser o único caminho para libertar uma
pessoa da dor que não a deixará?
Duas éticas. A única
pergunta a se fazer é: "Qual delas está mais a serviço do amor?"
Nenhum comentário:
Postar um comentário