ARTUR AZEVEDO
SÃO LUÍS-MA = 1855-1908
O Meu Criado João
No dia em que ele me apareceu, recomendado por uma senhora
a quem me queixara da falta de um bom criado, fiz-lhe as perguntas usuais:
- Como se chama?
- João.
- É português?
- Não, senhor; sou da Ilha da Madeira.
- Ora esta! Se é da Madeira, é português!
- Não, senhor: sou ilhéu.
- Bom; quanto quer ganhar por mês?
- Contento-me com que o patrão me der, contanto que não
seja menos de cinqüenta mil-réis, casa e comida.
Fiquei com o João.
Nesse mesmo dia encontrei-o a lavar as mãos com o meu
sabonete fino, que eu reservava, naturalmente, para o meu uso exclusivo.
- Que é isso? Você serve-se do meu sabonete?
- Não, senhor, não me estou servindo dele; estou a lavá-lo,
porque estava sujo de espuma.
A minha vontade foi mandá-lo embora, mas não o fiz.
Não o fiz e, dali a três dias, entrando em casa, encontrei
em cacos, na cesta dos papéis inúteis, uma estatueta da Vênus de Milo, que era
de gesso, pouco valia, mas eu estimava muito por ser uma reprodução muito fiel
do famoso mármore do Louvre.
Fiquei furioso:
- Quem quebrou isto?
- Fui eu, sim senhor, mas não foi por querer, respondeu-me
ele a rir-se.
- E você ainda em cima se ri!
- Ora, patrão! Já faltavam os dois braços à boneca!
Não o mandei embora.
Uma ocasião, os marinheiros de um dos nossos navios de
guerra recolheram a bordo um pobre cão naufragado, exausto já de tanto lutar
com as ondas.
Como já houvesse cão a bordo, e ninguém o quisesse, veio o
animal para a terra, trazido por um oficial de Marinha que mo ofereceu.
Era um cão ordinário, mas inteligentíssimo. Os seus
primitivos donos tinham-lhe ensinado umas tantas habilidades; ele comprazia-se
em mostrar-nas, e ficava muito satisfeito, agitando vertiginosamente a cauda e
pondo a língua de fora, quando eu lhas aplaudia, acariciando-lhe o pêlo. Era
muito mais inteligente que o João.
Uma vez achavam-se reunidos em minha casa alguns amigos, e
encantavam-nos as habilidades do cão, que estava presente.
O João ouvia calado, mas notava-se na sua fisionomia o desejo
de intervir na conversa.
Afinal interveio:
- O patrão esqueceu-se de contar aos senhores a maior
habilidade deste cão!
- Qual é? qual é? perguntaram todos em coro.
- Este cão que aqui estão vendo, senhores, sabe nadar!
Ao jantar, como ele nos viesse dizer, muito compungido, que
na venda não havia nem mais uma pedrinha de gelo, para remédio, um dos rapazes
exclamou, gracejando:
- Oh, senhor! pois nessa venda não há nem do tal gelo em
latas, que hoje se encontra em toda a parte?
O João disfarçou, saiu, e pouco depois voltou com esta
notícia:
- O dono da venda diz que tinha, mas acabou-se.
- O quê?
- Gelo em latas.
Imaginem que risota! Eu recomendara terminantemente ao meu
criado que me não deixasse dormir além as oito horas da manhã; ele, porém, não
tinha tido jamais ocasião de cumprir essa ordem, porque às sete já eu estava de
pé.
Certa manhã, tendo-me deitado bastante tarde, acordei e,
consultando o relógio, vi que eram já nove horas.
- Ó, João!
- Patrão?
- Pois não lhe tenho eu dito um milhão de vezes que não me
deixe dormir além das oito horas?
O João sorriu - o mesmo sorriso de quando quebrou a Vênus
de Milo -, coçou a cabeça e respondeu:
- Eu vim acordar o patrão, vim...
- E então?
- Mas não acordei o patrão porque o patrão estava a dormir!
Mas a melhor foi esta: Uma noite em que lhe mandei oferecer
cerveja às visitas, ele apareceu na sala com uma bandeja em que havia seis
copos cheios e dois vazios.
- Para que esses copos vazios, João?
- É para alguém que não queira...
Dessa vez pu-lo no olho da rua.
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