O
alemão Melander (1571 – 1640) sabia latim tão bem quanto seus colegas italianos
e franceses. Protestante, quando podia alfinetava frades e freiras. Ele
inclui-se no grupo de humanistas do Renascença, Escrevendo num gênero típico da
época, que constituía em coletâneas ao mesmo tempo instrutivas e recreativas,
misturando anedotas e fatos curiosos. O conto em questão faz porte de
Joco-Seria (Coisas Jocosas e Sérias) e inclui-se dentro da tradição boccaciana.
A Mulher E O Cachorro
Costumava certo fidalgo da Vestefália convidar para o almoço domingueiro o seu presbítero, homem moço, conversador e faceto, conduzido havia pouco ao leme da Igreja.
Um dia teve de viajar para o
estrangeiro. Estando já a meia milha de seu castelo, disse ao escudeiro, de
repente:
- Lembro-me agora de uma coisa de que
faço muita questão que minha esposa seja advertida; para ela também é muito
importante. Volta, pois, imediatamente, e adverte-a em meu nome, de modo grave
e solene, que não dê ao presbítero, em minha ausência, nem almoço nem jantar;
não o deixe entrar em casa durante todo o tempo em que eu não estiver lá; e,
principalmente, não ponha os pés em casa dele, e se abstenha de qualquer
conversa com ele.
O escudeiro prometeu a seu amo cumprir
a ordem, e regressou ao castelo. Mas, apenas se afastara um pouco, pôs-se a
meditar e a resmungar: – “Decerto o meu amo assustou-se com a idéia de que esse
nosso presbítero novato, cheio de seiva como é natural em um moço, rapaz forte,
formoso e lúbrico, se pusesse a assaltar o pudor da senhora.
Deve ser por isso que lhe proibiu toda
espécie de familiaridade com ele. Mas eu, por Hércules, conheço os costumes
dessas mulherezinhas. Elas praticam de preferência justamente as coisas de que
têm ordem de se abster. Portanto, para que em nossa ausência ela não tenha
ligações com o tal acólito, nada lhe direi, absolutamente, sobre a ordem do meu
amo, mas inventarei algum outro recado por ele dado a mim.”
Mal entrara o escudeiro no castelo, já
à senhora acudia, e, com lágrimas nos olhos, perguntou-lhe:
- Que significa a tua volta tão
apressada? Será que os negócios de meu marido não andam bem?
- Andam, sim, muito bem – respondeu o
criado, – Meu senhor mandou-me voltar para, em seu nome, advertir-vos de uma
coisa. Quer e manda o meu nobre senhor que em sua ausência não vos ponhais a
brincar com aquele nosso grande molosso, acostumado a rédeas, nem o monteis.
Teme que aquele cachorro irritável e sempre disposto a morder venha a
morder-vos, por acaso.
- Não entendo muito bem esta proibição
– respondeu a mulher. – Por Hércules, nunca tive a idéia de acariciar o
molosso, ainda menos de montá-lo. Digo mais: não há ninguém no mundo que me
haja visto brincar com ele. Por tudo isso, esta recomendação era inteiramente
supérflua.
Mas o escudeiro, antes de se ir,
insistiu:
- Compreendestes, então, minha senhora,
o recado de vosso marido? Ponde, pois, todo o empenho em lhe obedecer.
- Volta a meu marido – respondeu a
mulher -, transmite-lhe os meus votos de felicidade, e dize-lhe que fique
tranqüilo, não se preocupe comigo, pois farei todo o possível para lhe provar,
pelo meu procedimento, quanto lhe estou submissa neste ponto, como em outro
qualquer.
Mal o escudeiro tinha virado as costas,
eis que a mulher começa a matutar: – “Não posso imaginar por que razão meu
marido me proíbe de acariciar o molosso ou montar nele. Deve haver aí algum
motivo oculto. Não me lembro, por Castor, de o ter o feito ou mesmo tentado.
Bem, de qualquer maneira está certo: morra eu se tocar o cão com um dedo
sequer!”
Depois de tais reflexões, vai buscar
alguns pedaços de pão e joga-os ao cachorro. Verificando que este os devora
avidamente e vem lisonjeá-la depois, traz mais pão e repasta o animal até
saciá-lo. Acaba acariciando-o, sem dúvida para experimentar se é tão irritável
como pretende o marido. Vendo que o animal suporta bem o tratamento, exclama:
- Vejam só como é tratável o nosso
molosso!
Nisto, senta-se no cão, apertando-lhe
um tanto as costas com as nádegas. O cachorro se enfurece, arreganha os dentes
e crava-os no braço da mulher.
Ensangüentada, agoniada pela dor, ela
vê-se forçada a chamar um médico para tratar-lhe da ferida.
Passam-se os dias. Retorna o fidalgo, e
encontra a esposa de cama, com ar abatido, muito pálida.
- Que desgraça te aconteceu, minha luz?
– pergunta-lhe, alarmado.
- Tudo isto é por tua causa – respondeu
ela. – Se não me houvesses recomendado, pelo escudeiro, que não brincasse com o
molosso, nunca me haveria atrevido a tocá-lo.
O fidalgo, surpreendido, procura
justificar-se por todos os meios e jura por Júpiter não ter mandado dizer pelo
escudeiro nada de semelhante; depois, chama-o:
- Então, patife, eu mandei dizer a
minha mulher que não acariciasse o molosso?
- Nada disso – responde o criado. –
Mandastes-me proibi-la de introduzir o presbítero em vossa casa enquanto
estivésseis ausente. Eu, porém, inventei outro recado, por saber do costume que
têm as mulheres de fazer precisamente o que se lhes proíbe. Se de fato eu lhe
tivesse vedado todo e qualquer contato com o padrezinho, sem nenhuma dúvida ela
o haveria introduzido em casa, e agora, em vez de terdes uma esposa honesta,
teríeis o vosso lar transformado em hediondo prostíbulo. Foi isso que eu quis
evitar, convencido de que a mulher procura sempre o que se lhe proíbe; e podeis
ver a prova manifesta disso no fato de ela ter acariciado o cachorro e tê-lo
montado, embora eu lho houvesse vedado com a maior insistência.
O fidalgo não deixou de aprovar a
atitude do prudente criado, a quem daí em diante teve em melhor conceito, e
encerrou o incidente com as palavras:
- Prefiro ver minha mulher mordida pelo
cachorro a sabê-la desonrada pelo acólito.
Fontes: - COSTA, Flávio Moreira da (organizador).
Os 100 Melhores Contos de Humor da Literatura Universal. 5.ed. RJ:
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