LIMA BARRETO
RIO
DE JANEIRO-RJ = 1881-1922
Não Se Zanguem
A cartomancia entrou decididamente na vida nacional. Os
anúncios dos jornais todos os dias proclamam aos quatro ventos as virtudes
miríficas das pitonisas.
Não tenho absolutamente nenhuma ojeriza pelas
adivinhas; acho até que são bastante úteis, pois mantêm e sustentam no nosso
espírito essa coisa que é mais
necessária à nossa vida que o próprio pão: a ilusão.
Noto, porém, que no arraial dessa gente que lida com o
destino, reina a discórdia, tal e qual no campo de Agramante.
A política, que sempre foi a inspiradora de azêdas
polêmicas, deixou um instante de sê-lo e
passou a vara à cartomancia.
Duas senhoras, ambas ultravidentes, extralúcidas e não
sei que mais, aborreceram-se e anda uma delas a dizer da outra cobras e
lagartos.
Como se pode compreender que duas sacerdotisas do
invisível não se entendam, e dêem ao público esse espetáculo de brigas tão
pouco próprio a quem recebeu dos altos
poderes celestiais virtudes excepcionais?
A posse de tais virtudes devia dar-lhes uma mansuetude,
uma tolerância, um abandono dos interesses terrestres, de forma a impedir que o
azedume fosse logo abafado nas suas almas extraordinárias e não rebentasse em
disputas quase sangrentas.
Uma cisão, uma cisma nessa velha religião de adivinhar
o futuro, é fato por demais grave e pode ter consequências desastrosas.
Suponham que F. tenta saber da cartomante X se coisa
essencial à sua vida vai dar-se e a
cartomante, que é dissidente da ortodoxia, por pirraça diz que não.
O pobre homem aborrece-se, vai para casa de mau humor e
é capaz de suicidar-se.
O melhor, para o interesse dessa nossa pobre
humanidade, sempre necessitada de
ilusões, venham de onde vier, é que as nossas cartomantes vivam em paz e
se entendam para nos ditar bons
horóscopos.
Correio
da Noite, Rio, 26-12-1914.
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