sábado, 14 de setembro de 2013

CRÔNICA

MAURO MOTA
RECIFE-PE  =  1911 / 1984

Pente Fino

Escrevi sobre a invasão das casas pelos percevejos e eis que os jornais referem-se aos piolhos que estariam reaparecendo no interior do Nordeste.
Os piolhos recordam os pentões comentados pelo padre Lopes Gama e os pentões o seu oposto: os pentes-finos, com a sua função específica; "tirar piolho". Sem qualquer exagero, eis um hábito procedente dos começos da colonização e somente liquidado nas cidades pelos modernos inseticidas. Das casas-grandes de engenho aos sobrados urbanos do Recife, exercia-se com naturalidade, na rotina doméstica. Jovens escravas, depois as empregadinhas de dedos leves e ágeis de tato e faro, especializaram-se na caça desse parasita, às vezes cúmplices de um sensualismo inconsciente ou voluntário.
O piolho — façam-lhe essa justiça — alheava-se a qualquer distinção de classe ou grupo etário. Para usar-se uma expressão atual, pode-se dizer que ele estava "em todas", isto é, em todas as cabeças. Queria o seu habitat: os cabelos. Onde os houvesse — salvam-se os carecas — aí instalava-se com o poder de propagação local e migratório. Pulava de uma cabeça para outra, ultrapassando em rapidez a medida popular de tempo mínimo: num abrir e fechar de olhos. E logo fazia a nova colônia e o trampolim para outras.
Nas escolas, povoava as cabeças das crianças em tempo recorde bem superior ao das lições das professoras. Daí muita cabeça de menino ficando azul da navalha do barbeiro de colégio ou à domicílio para livrá-la da fauna cocefrenta, das lêndeas transitando nos fios de cabelos à maneira de acrobatas nas cordas de miniaturistas japoneses.
— Venha me pentear — lembre-se a Negra Fulô, de Jorge de Lima — e, para o atendimento dessa ordem, os pentes dos anúncios, inclusive o pente-fino, representam acessórios. As mãos das mulatinhas, em tantos casos, descendo ao pescoço e ao busto, interessavam mais com as suas carícias. Mesmos cabeças limpas reclamavam o fingimento da catação de piolhos: o cafuné identificado entre vários povos. Roger Bastide considera-o substituto dos divertimentos lésbicos. E Câmara Cascudo, citando o autor da Psicanálise do cafuné, recorda a oitava popular.

Eu adoro uma iaiá
Que quando está de maré
Me chama muito em segredo
Pra me dar seu cafuné
Abre o cabelo de banda
Dá-lhe quatro cafuné,
Raiva de home não dura
Prá mansidão de muié.


 
(Mota, Mauro. "Pente fino". Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 16 de janeiro de 1972)


Nenhum comentário: