sábado, 14 de setembro de 2013

CRÔNICA

MÁRIO SETTE
RECIFE-PE  =  1886-1950

Folhas De Canela


— Vamos ter casamento na rua!
Ignorassem os moradores esse acontecimento até o dia de sua realização, por modéstia ou esquisitice dos noivos, logo tudo se revelaria a um mero, mas indispensável sinal: as folhas de canela.
Muito cedo, entravam sacos de estopa ventrudos e dali a pouco, não somente pelas peças da casa, pelo corredor de entrada e sobrando pela calçada, as verdes folhagens das caneleiras se espraiavam, num imenso e farfalhante tapete.
E essas folhas serviam de arauto à vizinhança, ao bairro inteiro, em breve. As conversas iam pontuando os pormenores:
— Então, a Carminha, de dona Balbina, casa-se hoje!
— E não era sem tempo... Um noivado que estava encroando... De ano para ano se prometia e nada.
— Dizem que ele não queria ficar morando com a sogra. Juntou dinheiro até alugar casa sua.
— Quem casa quer casa... É uma grande verdade. Cada um tem seu gênio e, depois, chegam as desarmonias...
— Com aquela dona Balbina só mesmo o marido se agüenta, porque é um maria-vai-com-as-outras...
— Mas, é certo mesmo que o casamento é hoje?
— Oxente! Eu não vi as folhas de canela!
Desapareciam quaisquer dúvidas. O vestido de noiva, a capela de flores de laranjeiras, o buquê de cravos, as alianças de ouro, a casaca do noivo, seriam evidências outras, mas posteriores. As folhas de canela afirmavam-se com antecipação de todos os demais vestígios e passos das cerimônias.
Pisadas, iam-se impondo pela visão e pelo olfato. Espalhavam seu cheiro característico. Cheiro de casamento. Aroma de festa. Iam, também, derramá-las pela escadaria da igreja, pela nave, pelos degraus do altar. E, se por ventura, a casa do casamento ficava próxima ao templo, havia como que uma tapeçaria dessas folhagens ligando os dois tetos.
À hora do desfile as folhas estavam sob os passos dos noivos e dos convivas. O rumor do atrito era como um motivo sonoro desse belo cortejo de trajes de gala: as impecáveis casacas dos cavalheiros, claques e luvas às mãos, peitilhos gomados, botinas de verniz; os vestidos de seda rangedora, os penachos e diademas, os leques de plumas das damas.
Folhas de canela... É bem certo que elas lastravam os soalhos para outras festividades. Religiosas ou profanas. Tanto uma noite de novena como um baile de carnaval. Simbolizavam o júbilo e alvoroçavam os espíritos para as expansões festivas.
Nos casamentos, entretanto, encontravam seu mais alto simbolismo. Perfume de folhas de canelas lembrava noivos. Havia moças que grudavam uma dessas folhas na esperança de um sortilégio de seu casamento próximo, numa virtude de simpatia semelhante à dos cravos da noiva. Pegava...
A velha usança foi-se. As folhas de canela acabarão raras como as do pau-brasil, que tão poucos conhecem neste país chamado Brasil e onde se cultivam árvores da Índia ou da China...
Em verdade, para que mais folhas de canela nos casamentos... se os noivos se despedem à porta da igreja?...

(Sette, Mário. Maxambombas e maracatus. 3ª ed. Rio de Janeiro, Casa do Estudante Brasileiro, 1958, p.211-213)


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