* Por Marco Albertim
Pela-porco
O mais comum é ouvir um grito abafado, como numa dor. O ticuqueiro, após o
corte dos cachos maduros de cocos, dá conta da própria conta para se assegurar
da paga. O apontador embaixo anota, pouco se importando com a queixa, no grito,
de que entre as palhas verdes não há mais frutos a colher. O vento gemendo
empresta força ao gemido dos homens, salga-o com a acidez marinha. As águas se
alvoroçam. Não as temem, eles, inda que urdam a posse das ondas na pesca de
tainhas, reparando-os da paga miúda. Têm braços e pernas roliços, não mais
grossos que a abertura nas peias de couro onde acomodam a sola de um pé, a
curva de uma perna.
Santina está a pouco mais de um quilômetro dali, do
outro lado do rio que separa o arruado de casas do coqueiral junto à praia. Dá
para ouvir os gemidos. Distingue o do marido com má vontade. A vida é difícil
na colheita; sem a colheita, então... Baltazar quer, quase forçara uma prenhez.
Ela recusara, recusa-se a ter um filho segurando-se numa de suas pernas,
enquanto a mãe mexe o feijão na panela de barro, com a colher feita da quenga
do coco. O menino cheirando o feijão encardido no cominho, no naco de ossobuco.
Quando não está em casa, o marido senta-se no pela-porco. Na frente, a bodega
que vende cachaça aos ticuqueiros; na safra e na entressafra. Bebe fazendo
caretas, esconjura o demônio. Bêbado, volta para casa...
- Tem jeito de curar essa bebedeira, não!?
- ...!
- De dia, geme no olho do coqueiro; de noite, geme
de cachaça! Num vou aguentar essa vida não! Tô avisando.
O dia flagrou-os mudos. Ela espremendo o pano do
café ralo, no bule amassado de ágata. Fora verde a louça, oliva, com flores em
alto-relevo. Com as quedas, as flores sumiram, deixando estrias na pintura. No
tédio, Santina perdera a conta das vezes que derrubara o bule do fogão de
barro, sobre a trempe de madeira. O café derramado, o vapor subindo junto à
parede do massapé enegrecido.
- Vai tocar fogo na casa, Santina!
- Vai tocar fogo na casa, Santina!
- Que me importa...
- Volte pra casa de sua mãe. É o melhor a fazer.
- Deixe o dinheiro do pela-porco comigo que eu
compro passagem.
- A vontade é sua. Assuma a despesa.
Assumiu a má vontade de espremer o pano do café.
Ele, calado, olhando o pão que sobrara da noite; não o comera porque,
entornando a cachaça, entretera o estômago com as sardinhas na gordura, no sal,
da caixa de madeira de Seu Arlindo, da bodega. Seu Arlindo da bodega tem
dinheiro, tem filhos na escola. A mulher não se nega à prenhez; é gorda, tem
varizes nas pernas mas cozinha o feijão num fogão a gás, com charque, muito
charque.
- Um dia quem vai embora sou eu – diz ele, sentado
no pela-porco.
- Tem coragem de deixar a mulher, Baltazar?
- Num quero deixá-la na rua. Mas tenho fé em Deus
de devolver ao pai, de onde roubei.
- Ladrão de mulher não se arrepende, rouba outra...
A colheita teve fim um mês depois. Baltazar
juntou-se aos outros na pesca da tainha. Com o alvoroço das ondas, foram à
camboa. Águas escuras, confundindo-se com a vegetação do mangue, na lama que
soluça na raiz das aningas. A rede fora jogada. Ele deitou-se com a cabeça na
popa da canoa. O parceiro fez o mesmo na proa. As outras canoas, distantes umas
das outras para dar espaço ao comprimento das redes. Santina em casa, sem ouvir
os gemidos do marido no olho do coqueiro.
- Huuui...
- Huuui...
Imita-o, mas geme os sentidos na fruição da bíblia
que trouxera quando fugira com Baltazar. Entregara-se com o juízo no macho e a
descrença no casamento sem a unção de Deus. Ter um filho sem o óleo santo da
Igreja, seria viver sem regras, abastardar-se.
Baltazar chegou na boquinha da noite, com meia
dúzia de tainhas atadas com a embira nas guelras, nas bocas. Fez a moqueca,
ela. O coco, ralado e espremido antes da pescaria. Comeram. Noitinha,
descansados, ele procurou-a na cama. Feito uma vestal, ela entregou o sexo cru,
a vagina seca, sem sede. Forcejando-a, ele viu um esgar num canto de sua boca,
logo desfeito para dar lugar à quietação morta do rosto. Levantou-se sem
brusquidão. No banheiro, com as pernas entre a bacia de alumínio que enchera,
asseou-se, livrou das entranhas o sêmen vicioso.
* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal
do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o
sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de
contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho
Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas
“Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de
contos e um romance.
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