SACHA GUITRY
RÚSSIA = 1885-1957
O Espelho
Esta aconteceu na China. Um chinês preparava-se para ir ao mercado, que fica a alguns dias de viagem. Está anoitecendo. O chinês despede-se da mulher.
— Até à volta, Mel de Crisântemo. Que quer que lhe traga do mercado?
—
Eu queria um pente.
—
Um pente? Está bem. Mas eu tenho que comprar tanta coisa, como é que me vou
lembrar?
—
Não precisará mais do que olhar para a lua. Veja: a lua é crescente. Pois bem,
o pente que eu quero é exatamente da forma da lua crescente.
—
Até à volta.
E
o chinês parte. Chega ao mercado. Faz suas compras. Terminando-as, já bem
tarde, lembra-se da promessa, mas não se lembra muito bem do objeto desejado
pela mulher.
Encontra-se,
nesse momento, junto de um mercador e lhe diz:
—
Pois veja só: prometi levar um presente a minha mulher, mas não me lembro mais
o que foi. Ah! sim, espera. Estou-me lembrando agora que ela me disse para
olhar a lua.
—
Olhe, é lua cheia.
(A
lua, que estava no seu primeiro quarto no dia da partida do chinês, agora era
cheia).
—
Deve ser um objeto redondo.
E
o chinês compra um espelho, paga-o, faz um pacote e põe-se a caminho para a
volta.
Ao
chegar em casa, diz-lhe a mulher:
—
Bom dia, meu marido. Trouxe-me o que eu lhe pedi?
—
Naturalmente. Aqui está.
E
o chinês dá o pacote à mulher, que apressadamente o abre. Essa mulher nunca
tinha visto um espelho. E vendo nele um vulto de mulher, fica indignada:
—
Meu marido, comprou outra mulher!
E
Mel de Crisântemo chora todas as lágrimas de seu pequenino coração. Os seus olhos
chamam a atenção de sua mãe.
—
Ah! mamãe, mamãe — grita ela. — Venha ver. Meu marido trouxe para casa outra
mulher.
A
mãe toma o espelho, olha-o e diz à filha:
—
Fica sossegada: é tão velha e tão feia!
Sacha Guitry nasceu em São Petersburgo, Rússia, no ano de 1885. Filho do famoso ator Lucien Guitry, dedicou-se desde muito cedo ao teatro, ora como autor, ora como ator ou diretor. Aos vinte e um anos de idade, revelou-se comediógrafo de méritos invulgares com a peça "Nono" — um dos grandes êxitos da época, e ainda hoje de vez em quando ressuscitada nos melhores teatros da Europa. Vivacidade, ironia, graça e originais dotes de psicólogo, eis algumas das características que marcam o teatro de Sacha Guitry, assim como os seus contos e crônicas.
Disputou,
durante muito tempo, com Tristan Bernard, o título de homem mais espirituoso da
França. Se o primeiro dominou no período anterior à guerra de 1914, é
indiscutível que cabe a Guitry o cetro no período que vai de 1920 a 1940.
Homens como Bernard Shaw, Anatole France, Mirbeau e tantos outros mais,
prodigalizaram louvores à obra deste escritor, não faltando mesmo quem o
comparasse a Molière. Ressalvando o evidente exagero, e guardada a devida
proporção, ainda assim é muito o que sobra para a glória de Sacha Guitry,
espírito inquieto, buliçoso, que não contente com as experiências e glórias
teatrais, tentou ainda o cinema, dirigindo ou representando filmes hoje
incorporados ao que de melhor produziu o cinema francês.
A
arte de Guitry se caracteriza por uma extrema espontaneidade e uma grande
riqueza de invenção cômica. Pode-se, diz um crítico, criticá-lo pela solidez de
construção de algumas de suas peças ou livros, mas jamais será censurado por
ausência de vivacidade e de graça.
O texto acima foi extraído do livro “Maravilhas do Conto Francês”, Editora Cultrix – São Paulo, 1958, pág. 319. Seleção de Jean P. L. Bellade e organização de Diaulas Riedel.
Nenhum comentário:
Postar um comentário