MARINA COLASANTI
ERITRÉIA = 1937
A Moça Tecelã
Acordada ainda no escuro, como se houvesse o sol chegado
atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se no tear.
Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz,
que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto la fora a claridade da
manhã desenhava o horizonte.
Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora,
em longo tapete que nunca acabava.
Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas,
a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo.
Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em
pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à
janela.
Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as
folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios
dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza.
Assim, jogando a
lançadeira de um lado para o outro e batendo os grandes pentes do tear para
frente e para trás, a moça passava seus dias.
Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com
cuidados de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido.
Se sede vinha, suave era a lã de leite que entremeava o tapete. E à noite,
depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranquila.
Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria
fazer.
Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se
sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou como seria bom ter um marido ao
lado.
Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma
coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe
dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo , chapéu emplumado,
rosto barbeado, corpo emprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando
de entremear o último fio da ponta dos sapatos, quando bateram à porta.
Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o
chapéu de pluma, e foi entrando na sua vida.
Aquela noite, deitada contra o ombro dele, a moça pensou
nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.
E feliz foi, por algum tempo. Mas se o homem tinha pensado
em filhos, logo os esqueceu. Porque, descoberto o poder do tear, em nada mais
pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.
- Uma casa melhor é necessária – disse para a mulher. E
parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor
de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer.
Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente. - Por que
ter casa, se podemos ter palácio? - Perguntou. Sem querer resposta,
imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates de prata.
Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos
e portas, pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não
tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para
arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes
acompanhando o ritmo da lançadeira.
Afinal, o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o
marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta
torre.
– É para que ninguém saiba do tapete – disse. E antes de
trancar a porta a chave advertiu: - Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos
cavalos!
Sem descanso tecia a mulher caprichos do marido, enchendo o
palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o
que queria fazer.
E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza
lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez
pensou como seria bom estar sozinha de novo.
Só esperou
anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências.
E descalça para não fazer barulho, subiu a longa escada do torrre, sentou-se ao
tear.
Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou
a lançadeira ao contrário, e, jogando-a veloz de um lado para o outro, começou
a defazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os
jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que
continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da
janela.
A noite acabava quando o marido, estranhando a cama
dura, acordou, e espantado olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela
já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desparecendo,
sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe o corpo, tomou o peito aprumado, o
emplumado chapéu.
Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça
escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado
traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.
(In Doze reis e a moça no
labirinto do vento. 2. ed. Rio de Janeiro, Nórdica, 1985.)
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