JOÃO UBALDO RIBEIRO
ILHA DE
ITAPARICA-BA = 1941
Questões
Cornológicas
Se vocês
estão pensando que trocaram uma letra aí em cima, esclareço que não trocaram.
Não é "cronológicas", é "cornológicas" mesmo. Trata-se do
que presumo ser um neologismo, para qualificar fenômenos ligados a cornos.
Apesar de injusta fama em contrário, não sou dado a inventar palavras e
perpetrei esta por achá-la necessária para sanar uma falha em nosso já
indigente vocabulário. Bem verdade que sua etimologia, misturando latim com
grego, haverá de alçar sobrolhos entre os filólogos, mas, se Auguste Comte pôde
fazer a mesma coisa com "sociologia", creio que, transcorrido tanto
tempo, um brasileiro já tem o mesmo direito, sem macular excessivamente a nossa
luzente imagem no exterior ou expor-se a acusações de plágio e macaqueação. A
noção de corno, a começar pela própria palavra, ainda classificada como chula
mas de emprego corriqueiro (e prático, ouso arriscar peraltamente) na melhor
sociedade, vem sofrendo, como testemunhamos os mais velhos e jamais saberão os
mais novos, enormes modificações em nossa cultura. Ainda se mata e bate
bastante por motivos cornológicos no Brasil, mas a verdade é que se trata de
prática cada vez mais demodée, politicamente incorretíssima e inconcebível para
uma pessoa realmente moderna. Vem a calhar, se procurarmos não ser hipócritas,
a reflexão que meu pranteado amigo Zé de Honorina expunha em Itaparica, ao
perceber excessiva confiança ou negligência da parte de algum consorte:
"De um bom corno ninguém neste mundo pode dizer que está livre."
Tanto
assim que até mesmo no Nordeste, onde, quando eu era menino, chamar alguém de
corno rendia invariavelmente peixeirada e provável absolvição do peixeirador
por um júri popular, a maneira de encarar o tema mudou muito, tanto assim que
há notícias de acalorados concursos de cornos em Pernambuco, além de clubes e
outras entidades da categoria. Na Praia do Forte, Bahia, onde estive faz alguns
anos, me informaram, garantindo absoluta veracidade, sobre o disputadíssimo
troféu Corno do Ano. Estavam até estudando uma reformulação do regulamento,
para evitar problemas como o ocorrido no ano anterior, em que o irresignado
segundo colocado fez um discurso de protesto, devolveu o diploma (o troféu
principal é um chapéu com dois vistosos chifres de zebu a ornamentá-lo) e quase
quebra tudo.
- Ele de
fato era e ainda é um grande corno - me disse meu informante. - Não se pode
negar valor a ele, é corno há muitos anos, tem uma grande tradição.
Mas deu
azar de pegar um concorrente imbatível, um coroa viúvo, pai de três filhos
grandes, que casou com uma moça uns 40 anos mais nova, que não só começou a dar
corno nele com toda a vizinhança em menos de um mês como não poupou nem os três
enteados, passou os três nas armas! Aí você tem de admitir que não tinha
competidor à altura, é caso de Guinness. Este ano eu acho que vão criar um
troféu especial pelo conjunto da obra, para ver se ele se consola, ele merece.
Contudo,
o assunto é ainda sujeito a controvérsia. Nem todo mundo aceita essa mudança de
costumes. Sei que somente eu leio essas coisas, mas li mesmo, como já noticiei
aqui, que no Japão vendem (comercializam, aliás; hoje em dia ninguém vende mais
nada, só comercializa) calcinhas e cuecas que ficam irremediavelmente manchadas
de uma cor pouco discreta, se tocadas por algum vestígio de esperma. Além
disso, há um produto, já esqueci se creme, loção ou outro, que, passado na
pele, também a mancha, se o paciente tomar um banho ou lavar a parte do corpo
sob fiscalização. Claro, no Brasil a roupa de baixo não funcionaria, porque as
compatriotas dispostas (água morro abaixo, fogo morro acima e mulher quando
quer dar ninguém segura - repetia também o grande Zé) a apor chifres nas testas
de seus parceiros habituais teriam um estoque de calcinhas extras nas bolsas ou
gavetas, assim como os homens guardariam estepes de cuecas nas pastas ou também
gavetas do escritório. Quanto à lavação, não creio que tampouco houvesse
problema, porque, como não se ignora, o brasileiro e a brasileira são muito limpinhos
e uma indignada alegação de que "eu lavei, eu lavo sempre!" poderia
bastar para explicar a mancha. Agora, também li que cientistas da universidade
americana de Emory, em Atlanta, descobriram um certo gene da fidelidade.
Caminho aberto, ainda que presentemente remoto, para os cornófobos exigirem
atestado de vacina de seus eleitos e o governo lançar o programa Corno Zero,
certamente preferível, para a vasta maioria dos governados, à cornidão
participativa que algum ideólogo poderia sugerir. Mas também receio que essa
tentativa não dará certo. Além de, provavelmente, a vacina não dever fornecer
proteção absoluta, a experiência indica que ela passaria a ser vendida em
camelôs 80% mais barata e sua versão paraguaia, além de dar ressaca, produziria
uma quantidade insustentável de tocadores de harpas, e o Brasil não precisa de
mais um problema sociocacofônico, entre os muitos que já enfrenta. Não, receio
que, apesar dos progressos científicos, o Ibama não precisará incluir o corno
na lista de espécies ameaçadas. Ele faz parte da vida nacional. Outro dia
mesmo, no boteco, um dos companheiros de mesa, vítima de memorável corneamento
que, apesar de longínquo no tempo, ainda hoje é lembrado, lamentou que não se
pode mais contar piada de português, piada de japonês, piada de negro, piada de
homossexual, piada de anão, piada de médico, piada de nada. Mas piada de corno
pode, queixou-se ele ressentido, todo mundo curte com a cara do corno. Por que
tal injustiça? Isso o entristecia.
- Não fique assim - consolou-a uma das senhoras presentes. -
É simples, é porque não é minoria.
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