IVAN ÂNGELO
BARBACENA-MG
= 1936
Assombrações
Existem uns amores que já morreram há muito tempo
mas de vez em quando aparecem, como uma assombração. Não, não falo de
assombrações que voltam para seduzir, como a moça-fantasma de Belo Horizonte
poetizada por Carlos Drummond de Andrade; ou voltam para apimentar uma vida que
ficou insossa, como o Vadinho de Jorge Amado faz com dona Flô. Não. Estas, diz
o ditado, sabem para quem devem aparecer, ou seja: só aparecem com a ajuda
daqueles para quem aparecem. Falo de outras, que fazem uma visita breve, uma
aparição, e somem, de improviso, sem arrepiar ninguém.
Às vezes esses amores nem se mostram inteiros.
Surge uma boca, um seio, uma pele, um andar, uma risada. Quando se presta
atenção, a figura desaparece: era assombração. O fantasma antigo pode aparecer
de repente no meio de uma leitura, ao escovarmos os dentes, e até na hora do
amor. A gente pode estar conversando, discutindo um negócio, um filme, uma
jogada, e se intromete aquele olhar. Pode estar dirigindo um carro e a mão que
repousa hoje na nossa perna tem o mesmo peso de alguma do passado e aí vem o
fantasma sem-que-fazer e puxa conversa.
Não é saudade, não é nada: é intromissão. A figura
surge concreta, sensível, do mesmo modo como nos vem um gosto de doce de
abacaxi ou uma chinelada de mãe. Quem governa fantasma? Quem chama? Ninguém, é
ele mesmo quem se convida.
Não tem nada a ver com aquela coisa de telenovela,
aqueles dramas de folhetim em que se comenta: ele ainda gosta dela, não tira
essa mulher da cabeça, até hoje é apaixonado por ela etc. Nada disso. É pura
farra de assombração, que irrompe de repente na hora própria ou imprópria,
independentemente de convite ou convite. Ora uma, ora outra, faz sua
visita-relâmpago, muda ou falante, e some.
Que dizem? Cada visitado recebe seu recado conforme
gravou. Uma confessa trêmula, temerosa de desamor: "Não sou mais
virgem" - quando isso tinha importância. Outra, cobrando: "Você não
assume." Outra, no escuro: "Quem é você?" Amores de outro mundo
não se sentem obrigados a diálogo, dão seu recado e vão. Ou nem dão, só se
entremostram.
Alguns perdem a viagem, e nos assaltam só com uma
sensação, um nome, umas covinhas, tranças negras. Não têm mais aparência
corpórea. Será que morreram na vida real? Desvaneceram-se no tempo, frágeis
como velhas cartas que se esfarelam, como madeira sem lei. Nem por isso menos
reais em suas fantasmice, menos carentes de sentido que não a própria visita
inesperada.
De maneira nenhuma perturbam o amor em curso, nem é
essa sua intenção, se é que aparições têm algum propósito. O amor em curso é
feito de beijo e resposta - e segue intocado por essas intromissões. Também não
se pode dizer: são desejos, frustações. Não. Tiveram, no seu tempo, beijo e
resposta. Nada ficou por explorar, quando seus corpos eram matéria propícia.
Nada ficou por explorar, quando seus corpos eram matéria propícia. Foram
generosas no dar, alegres no receber: tiveram fartura. Não vagam por aí à
procura, estão satisfeitas no seu canto.
Nem se pode dizer: são visitas malfazejas. Pelo
contrário, são cordiais! São borboletas: passam, enfeitam com algumas cores,
vocejam e partem. Se deixam alguma coisa, é um sorriso na alma do visitado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário