ITABIRA-MG =
1902-1987
Recalcitrante
O trocador olhou, viu, não aprovou. Daquele
passageiro, escanchado placidamente no banco lateral, escorria um fio de água
que ia compondo, no piso do ônibus, a microfigura de uma piscina.
- Ei, moço, quer fazer o favor de levantar?
O moço (pois ostentava barba e cabeleira amazônica,
sinais indiscutíveis de mocidade), nem-te-ligo.
O trocador esfregou as mãos no rosto, em gesto de
enfado e desânimo, diante de situação tantas vezes enfrentada, e murmurou:
- Estes caras são de morte.
Devia estar pensando: todo ano a mesma coisa.
Chegando o verão, chegam os problemas. Bem disse o Dario, quando fazia gol no
Atlético: problemática demais. Estava cansado de advertir passageiros que não
aprendem viajar no coletivo. Não aprendem e não querem aprender. Tendo comprado
passagem por 65 centavos, acham que compraram o ônibus e podem fazer dele
casa-da-peste. Mas insistiu:
- Moço! O moço!
Nada. Dormia? Olhos abertos, pernas cabeludas,
ocupando cada vez mais espaço, ouvia e não respondia. Era preciso tomar
providência.
- O senhor aí, cavalheiro, quer cutucar o braço do
distinto, pra ele me prestar atenção?
O cavalheiro, vê lá se ia se meter numa dessas.
Ignorou, olímpico, a marcha do caso terrestre.
Embora sem surpresa, o cobrador coçou a cabeça.
Sabia de experiência própria que passageiro nenhum quer entrar numa fria. Ficam
de camarote, espiando o circo pegar fogo. Teve pois que sair de seu trono,
pobre trono de trocador, fazendo a difícil ginástica de sempre. Bateu no ombro
do rapaz:
- Vamos levantar?
O outro mal olhou para ele, do longe de sua
distância espiritual. Insistiu:
- Como é, não levanta?
- Estou bem aqui.
- Eu sei, mas é preciso levantar.
- Levantar pra quê?
- Pra que, não. Por quê. Seu calção está molhado de
água do mar.
- Tem certeza que é água do mar?
- Tá na cara.
- Como tá na cara? Analisou?
Ferrou-se de paciência para responder:
- Olha, o senhor está de calção de banho, o senhor
veio da praia, que água pode essa que está pingando se não for água do mar? Só
se…
- Se o quê?
- Nada.
- Vamos, diz o que pensou.
- Não pensei nada. Digo que o senhor tem que
levantar porque seu calção está ensopado e vai fazendo uma lagoa aí embaixo.
- E daí?
- Daí, que é proibido.
- Proibido suar?
- Claro que não.
- Pois eu estou suando, sabe? Não posso suar
sentado, com esse calorão de janeiro? Tenho que suar de pé?
- Nunca vi suar tanto na minha vida. Desculpe, mas
a portaria não permite.
- Que portaria?
- Aquela pregada ali, não está vendo? “O
passageiro, ainda que com roupa sobre as vestes de banho molhadas, somente
poderá viajar de pé.”
- Portaria nenhuma diz que passageiro suado tem que
viajar de pé. Papo findo, tá bom?
- O senhor está desrespeitando a portaria e eu
tenho que convidar o senhor a descer do ônibus.
- Eu, descer porque estou suado? Sem essa.
- O ônibus vai parar e eu chamo a polícia.
- A polícia vai me prender porque estou suando?
- Vai botar o senhor pra fora porque é um…
recalcitrante.
O passageiro pulou, transfigurado: – O quê? Repita,
se for capaz.
- Re… calcitrante.
- Te quebro a cara, ouviu? Não admito que ninguém
me insulte!
- Eu? Não insultei.
- Insultou, sim. Me chamou de réu. Réu não sei o
quê, calcitrante, sei lá o que é isso. Retira a expressão, ou lá vai bolacha.
- Mas é a portaria! A portaria é que diz que o
recalcitrante…
- Não tenho nada com a portaria. Tenho é com você,
seu cretino. Retira já a expressão, ou…
Retira, não retira, o ônibus chegou ao meu destino
e eu paro infalivelmente no meu destino. Fiquei sem saber que conseqüências
físicas e outras teve o emprego da palavra “recalcitrante”.
Fonte:
ANDRADE, Carlos Drummond de- De Notícias & Não-Notícias Faz-se a Crônica
-RJ: José Olympio, 1975.
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