ANTON TCHEKOV
RÚSSIA = 1860 / 1904
BRINCADEIRA
Um claro dia de
inverno... O frio é forte e seco de estalar, e Nádenka, que eu levo pelo braço,
fica com os cachos das fontes e o buço no lábio superior orvalhados de prata
cintilante. Estamos no cume de um morro alto. Diante dos nossos pés, até a
planície, lá embaixo, estende-se um declive escorregadio e brilhante na qual o
sol se mira como um espelho. Ao nosso lado está um trenó pequenino, forrado de
pano vermelho-vivo.
- Deslizemos até
embaixo, Nadêjda Petrovna! - imploro eu. - Só uma vez! Garanto-lhe, ficaremos
sãos e salvos!
Mas Nádenka tem
medo. Toda essa extensão, desde as suas pequeninas galochas até o fim da
montanha de gelo, se lhe afigura como um terrível abismo de profundidade
imensurável. Ela fica tonta e perde o fôlego. Só de olhar lá para baixo, quando
eu apenas lhe proponho sentar-se no trenó - que terá então se ela arriscar
despenhar-se no precipício? Ela morrerá, enlouquecerá!
- Eu lhe suplico!
- digo eu. - Não tenha medo! Compreenda, isso é fraqueza, é covardia!
Nádenka cede,
finalmente, e eu vejo pelo seu rosto que ela cede com perigo da própria vida.
Acomodo-a, pálida e trêmula, no trenó, sento-me, enlaço-a com o braço e junto
com ela precipito-me no abismo.
O trenó voa como
uma bala. O ar cortado chicoteia o rosto, silva nos ouvidos, bate, belisca
raivoso, até doer, quer arrancar a cabeça dos ombros. A pressão do vento tolhe
a respiração. É como se o próprio diabo nos tivesse agarrado com as suas patas,
e, urrando, nos arrastasse para o inferno. Os objetos que nos cercam fundem-se
num só longo risco, que corre vertiginoso. Parece, um instante mais, e
estaremos perdidos!
- Eu te amo,
Nádia! - digo eu a meia voz.
O trenó começa a
deslizar mais devagar, mais devagar, os uivos do vento e os zumbidos das
lâminas do trenó já não são tão terríveis, a respiração já não é tão ofegante,
e, finalmente, chegamos ao fim. Nádenka está mais morta do que viva. Está
pálida, mal consegue respirar... Eu a ajudo a levantar-se.
- Nunca mais farei
isto - diz ela, encarando-me com os olhos dilatados, cheios de terror. - Por
coisa alguma do mundo! Por pouco não morri!
Logo depois, ela
volta a si e já me fita com um olhar interrogador: terei sido eu quem disse
aquelas quatro palavras, ou foi apenas uma alucinação dentro do zunido da
ventania? Mas eu estou calado diante dela, fumando e examinando com atenção a
minha luva.
Ela toma o meu
braço e passeamos longos minutos diante do morro. O problema, visivelmente, não
a deixa em paz. Foram pronunciadas aquelas palavras, ou não? Sim ou não? Sim ou
não? É uma questão de amor-próprio, de honra, de vida, de felicidade, uma
questão muito importante, a mais importante do mundo. Nádenka perscruta o meu
rosto com olhares impacientes, tristes, penetrantes, responde atabalhoadamente,
espera que eu fale. Oh, que jogo de emoções neste rosto encantador, que jogo!
Vejo que ela luta consigo mesma, que precisa dizer alguma coisa, perguntar, mas
não encontra palavras, está encabulada, amedrontada, embargada pela alegria...
- Sabe duma coisa?
- diz ela, sem olhar para mim.
- O quê? -
pergunto eu.
- Vamos mais uma
vez... deslizar pelo morro.
Subimos para o
cume, pela escada. De novo faço Nádenka, pálida e trêmula, sentar no trenó, de
novo nos despencamos no precipício medonho, de novo uiva o vento e zunem as
lâminas, e de novo, quando o vôo do trenó está no auge do ímpeto e da zoeira,
eu digo a meia voz:
- Eu te amo,
Nádenka!
Quando o
trenó se detém, Nádenka lança um olhar para o morro que acabamos de descer
voando, depois perscruta longamente o meu rosto, escuta, atenta, a minha voz
indiferente e calma, e toda ela, toda, até mesmo o regalo de peles e o capuz,
toda a sua figurinha, exprime extrema perplexidade. E no seu rosto está
escrito:
"Mas o que é
que está acontecendo? Quem pronunciou aquelas palavras? Foi ele, ou foi engano
dos meus ouvidos?"
Esta incerteza a perturba, a impacienta. A pobre menina
não responde às minhas perguntas, franze a testa, está prestes a romper em
choro.
- Não preferes ir
para casa? - pergunto eu.
- Mas eu... eu
gosto destas... descidas - diz ela, enrubescendo. Não quer deslizar mais uma
vez?
Ela
"gosta" destas descidas, e no entanto, sentando-se no trenó, ela,
como das outras vezes, fica pálida, ofegante de medo, trêmula.
Descemos pela
terceira vez, e eu vejo como ela fita o meu rosto, como observa os meus lábios.
Mas eu aperto o lenço contra a boca, tusso, e quando chegamos ao meio do
declive, deixo escapar:
- Eu te amo,
Nádia!
E a charada
continua charada! Nádenka se cala, está pensando... Acompanho-a para casa, ela
procura andar mais devagar, atrasa o passo, espera sempre que eu lhe diga
aquelas palavras. E eu vejo como sofre sua alma, como ela tem que se esforçar
para não dizer:
"Não pode ser
que tenha sido o vento! E eu não quero que tenha sido o vento quem falou
aquilo!"
No dia seguinte de
manhã, recebo um bilhetinho: "Se o senhor vai ao morro hoje, venha me
buscar. N." E desde essa manhã, comecei a ir com Nádenka ao morro, todos
os dias e, voando encosta abaixo, no trenó, eu pronuncio, cada vez, a meia voz,
as mesmas palavras:
- Eu te amo,
Nádia!
Logo Nádenka
acostuma-se a esta frase, como ao vinho e à morfina. Não pode viver sem ela.
É verdade eu voar
montanha abaixo lhe dá medo, como antes, mas já agora o medo e o perigo
adicionam um encanto especial às palavras sobre o amor, as palavras que, como
dantes, constituem uma charada e oprimem a alma. São sempre os mesmos dois
suspeitos: eu e o vento... Qual dos dois lhe declara o seu amor, ela não sabe,
mas, ao que parece, isto já não lhe importa mais; não importa o vaso em que se
bebe, importa ficar embriagada!
Um dia, fui até o morro sozinho; misturei-me
à multidão e vejo como Nádenka chega até o sopé, como me procura com os
olhos... E depois, timidamente, ela sobe os degraus... Ela tem medo de ir
sozinha, oh, quanto medo! Está pálida como a neve, treme e vai, como se fosse
para o cadafalso, mas vai, vai sem olhar para trás, com decisão. Pelo visto,
ela resolveu, finalmente, tirar a prova: será que se farão ouvir aquelas
palavras estranhas, quando eu não estiver junto? E vejo como ela, lívida, com a
boca entreaberta de horror, toma assento no trenó, fecha os olhos, e,
despedindo-se para sempre do mundo, o põe em movimento... "zzzzzz..."
zunem as lâminas. Ouvira Nádenka aquelas palavras? Não sei... Vejo apenas como
ela se levanta do trenó, exausta, fraca. E vê-se pelo seu rosto que nem ela
mesma sabe se ouviu alguma coisa ou não. O pavor, enquanto ela voava morro
abaixo, roubou-lhe a capacidade de ouvir, de distinguir os sons, de entender...
Mas eis que chega
o mês de março, primaveril... O sol torna-se mais carinhoso. O nosso morro de
gelo escurece, perde o seu brilho e se derrete, afinal. Acabaram os passeios de
trenó. A pobre Nádenka já não tem mais onde ouvir aquelas palavras, e nem há quem
as pronuncie, pois o vento não se ouve mais, e eu me preparo para voltar a
Petersburgo - por muito tempo, quiçá para sempre.
Uma vez, pouco
antes de partir, uns dois dias, estava eu sentado, ao crepúsculo, no
jardinzinho, separado do pátio onde mora Nádenka por uma cerca alta de madeira.
Ainda faz bastante frio, debaixo do lixo, ainda há neve, as árvores ainda estão
mortas, mas já cheira à primavera, e, preparando-se para a noitada, as gralhas
fazem grande algazarra. Aproximo-me da cerca e espio pela fresta. E vejo como
Nádenka sai para os degraus e fixa o olhar tristonho e saudoso no firmamento...
O vento da tarde
sopra-lhe no rosto pálido e desanimado... Ele lembra-lhe aquele outro vento,
que uivava lá no morro, quando ela ouvia aquelas quatro palavras, e seu rosto
fica triste, triste, e pela face desliza uma lágrima... E a pobre menina
estende os braços, como se implorando ao vento que lhe traga aquelas palavras
mais uma vez. E eu, esperando o vento favorável, sopro a meia voz:
- Eu te amo,
Nádia!
Deus meu, o que se
passa com Nádenka! Ela solta um grito, sorri com o rosto inteiro e estende os
braços ao encontro do vento, risonha, feliz, tão bonita.
E eu vou arrumar
as malas...
Isto foi há muito
tempo. Agora, Nádenka já é casada; casaram-na, ou foi ela mesma que quis - isto
não importa - com um secretário da Curadoria, e hoje ela já tem três filhos.
Mas os nossos passeios no morro e a voz do vento trazendo-lhe as palavras
"eu te amo, Nádenka", não foram esquecidos. Para ela, isto é hoje a
mais feliz, a mais comovedora e a mais bela recordação da sua vida...
Mas eu, hoje, que
estou mais velho, já não compreendo mais, para que dizia aquelas palavras,
porque brincava...
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