EURICO DE ANDRADE
Nós Sofre Mas Nós
Goza
A
jardineira que carregava o povo de Tabuí era desengonçada. E põe desengonçada
nisso. Mas o dono da dita cuja, o Vivaldino, homem caprichoso e cheio das
invenções, sempre tava arrumando uma melhoria na sua máquina de ganhar a vida.
Arruma daqui, arruma dali, a coisa foi melhorando. O máximo mesmo foi quando
ele inventou de colocar uma porta na traseira da dita cuja e uma catraca com o
cobrador no meio do corredor. Povo de Tabuí ficou tão orgulhoso da sua empresa de
transporte que nunca mais a jardineira viajou de banco vazio. Todo mundo queria
experimentar a novidade que, segundo se dizia, sem tirar nem pôr, era igual aos
coletivos de Bel'Zonte. E Vivaldino, vivo pra danar, ganhando dinheiro.
Carregava gente, galinha, porco, bode, pato, ovos, saco de carne, abóbora,
tudo, em troca de uns trocados.
Foi
aí que um dia entrou o velho Honorato com sua cara metade, a Honorina e mais
umas muquiças na jardineira. Indo pra Tabuí. Se ajeitaram como puderam.
Jardineira quase desmontava nas subidas e descidas. Ar parado. Sol do meio-dia.
Calor de matar. Fedentina braba. Poeira sufocante deixando todo mundo meio
bazé. Honorina, de pandu cheio, vendo aquilo tudo, sentindo aqueles cheiros,
vendo as árvores passando de carreirinha, ouvindo a conversa mole do Tõe
Carapina, com bafo de cachaça misturado com cheiro da gasolina, começou a
sentir tonteira. Honório não teve conversa e soltou o verbo:
-
Pára! Pára! Pára aí, Vardino!
Vivaldino,
todo cheio de paciência, pára a condução, olha pra trás e pergunta:
-
O quê que foi home de Deus?
-
É a muié qui tá cum pobrema, sô! Nóis vai descê um tiquinho! Péra aí!
Desceram.
Honorina respirou um ar mais puro, sem poeira e fedentina, e melhorou.
Toca
a jardineira. Tõe Carapina, com a garrafa da Providência no bolso traseiro, de
vez em quando dava uma bicada para molhar a palavra. Soltava o verbo e ficava
mais bêbado e chato, contando potocas e piadas sem graça e até inconvenientes.
Ninguém mais tava agüentando sua conversa mole na parte traseira da jardineira,
de pé e trocando as pernas.
Aí
é que entrou a madama. Gente fina, com jeito de cidadã. Todo mundo viu. Sapatos
de salto alto. Batom vermelhinho nos lábios. Bolsa das mais chiques no ombro.
Vestido verde, longo e decotado. E um perfume!... ôta perfume! Daqueles que
atraem qualquer nariz.
Madame,
toda dengosa, com passo de veada e nariz arrebitado, não olha pra ninguém. E
tava injuriada sentindo a capiauzada silenciosa de olhos pregados nela. Tõe
Carapina, o bebum, de butuca e de boca aberta, foi seguindo a recém-chegada
pelo corredor da jardineira. Acontece que a madame, ao fazer força para passar
na catraca, se descuidou um pouquinho e deixou escapar um sonoro pum.
Todo
mundo volta a olhar para a distinta, agora, com cara de surpresa e reprovação.
Mas nem precisava. Ela já não tinha onde botar a cara. Vermelha como um
pimentão maduro. Pum todo mundo solta, mas, assim, vindo de uma madame, ele
tinha uma cor muito especial. Ela passa pela roleta, passa pelo Honório mais a
Honorina e vai lá pra frente, sem nem olhar de lado, tonta de vergonha.
Mas
voltemos ao Tõe Carapina. Passa também pela roleta e vem vindo meio
cambaleante. Cai aqui, cai acolá... Senta no colo dum negão que lhe dá um chega
pra lá. Aí vem pra bem junto da madame e, todo serioso, dá mais uma bicada na
Providência e, meio consolativo, fala bem alto, pra todo mundo ouvir:
-
Dona madama! Fica com vergonha não, tá? Hic!... óia, todo mundo peida, sá! Óia,
motorista peida, cobradô peida, hic!... eu peido, aquela véia peida... hic!...
fica com vergonha não, tá?
Madame
não tinha onde colocar a cara. Honorina, quando viu ser citada como
"aquela véia" que peida e os passageiros olhando para ela com cara de
riso, não agüentou. Passou mal outra vez. Chamou o juca com todo o entusiasmo.
Uma parte do vomitado lambuzou o vidro e a outra foi misturar-se à poeira da
estrada. Honorina cutuca no Honorato e gunguna umas coisas tampando a boca com
a mão. E o velho outra vez põe a boca no mundo:
-
Pára! Pára! Pára aí, Vardino! A muié tá com pobrema de novo!
-
Que que foi dessa vez?
-
É que ela foi lançá e gumitô a dentadura!
-
Foi longe?
-
Não... foi bem ali acolá lá atrais! Dá uma macharré pa trais, dá Vardino!
Vivaldino
engata uma marcha-ré na jardineira que volta sacolejando de má vontade uns cem
metros.
- Pára! Pára, Vardino! Foi aqui!
- Pára! Pára, Vardino! Foi aqui!
Honorato
desceu. Procurou a danada da dentadura tempão danado enquanto a Honorina ficou
dentro da jardineira tampando, com a mão, a boca murcha. Depois de um bom
tempo, volta o Honorato, meio triste e com cara de nervoso.
-
Uai, Honorato, num achô a dentadura não?
-
Uai, sô! Inté que achá ieu achei! Mas num é que a rodera passô in riba e
ismigaiô ela?
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