MACHADO DE ASSIS
RIO DE JANEIRO-RJ =
1839-1908
Um Apólogo
Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:
— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda
enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste mundo?
— Deixe-me, senhora.
— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que
está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na
cabeça.
— Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é
agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o
ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.
— Mas você é orgulhosa.
— Decerto que sou.
— Mas por quê?
— É boa! Porque coso. Então os vestidos e
enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?
— Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você
ignora que quem os cose sou eu e muito eu?
— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um
pedaço ao outro, dou feição aos babados...
— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou
adiante, puxando por você, que vem atrás obedecendo ao que eu faço e mando...
— Também os batedores vão adiante do imperador.
— Você é imperador?
— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel
subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho
obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...
Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da
baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que
tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira,
pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e
entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante,
que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos
de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:
— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há
pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é
que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...
A linha não respondia; ia andando. Buraco aberto pela
agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz,
e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava
resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de
costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no
pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte.
Continuou ainda nessa e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou
esperando o baile.
Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A
costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho,
para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e
puxava de um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando,
a linha para mofar da agulha, perguntou-lhe:
— Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da
baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com
ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira,
antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de
cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:
— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela
e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze
como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.
Contei esta história a um professor de melancolia, que me
disse, abanando a cabeça:
— Também eu tenho servido de agulha a muita linha
ordinária!
Texto
extraído do livro "Para Gostar de Ler - Volume 9 - Contos", Editora
Ática - São Paulo, 1984, pág. 59.
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