ELISA PALATNIK
RIO DE
JANEIRO-RJ = 1962
Vida De Pediatra
Não É Bolinho, Não
— Alô, dr. Felipe? Pelo amor de Deus, o senhor precisa ver o Dudu. Aqui é Rita, mãe dele.
— Rita? Mas peraí... eu acabei de ver o menino! Vocês acabaram de
sair do meu consultório.
— Justamente. Estou aqui no elevador, falando d celular. Tô
achando que do consultório até aqui, ele piorou um pouco...
— Mas...
— No décimo andar, ele ainda
estava bem. No sexto, comecei a achar um pouco quente. Agora, cheguei no térreo
e... ele está pelando!
— Rita, isso é impossível! Eu tirei a temperatura dele há cinco
minutos! Você tem que levar ele pra casa, ficar de olho e não esquecer de
pingar as três gotas no ouvido...
— Mas "três gotas" é muito vago. O senhor esqueceu de
falar o... o tamanho da gota.
— Como assim, o "tamanho da gota"?! Eu sei lá! Gota é
tamanho único!
— De forma nenhuma. Tem gotas gordas e gotas magras. Tamanho P, M
e G! Mas tudo bem, se o senhor está dizendo que não é importante...
— Então ótimo.
— Peraí, só pra rememorar... são três gotas em cada ouvido, três
vezes ao dia. Se ele tem dois ouvidos, são 18 gotas por dia. Durante 20 dias,
360 gotas. Acertei?
— Acertou. Meus parabéns. Até mais ver.
— Um momento! E se acontecer de caírem quatro gotas em vez de
três?!
— Qual é o problema?
— Eu é que pergunto! Qual é o problema? Ele pode ficar, sei lá...
com alguma seqüela no tímpano? Ficar surdo? Mudo? Gago? Gay?
— Se você não desligar agora, eu vou ficar com seqüelas! Eu!
— Se você não desligar agora, eu vou ficar com seqüelas! Eu!
— Tá, calma... Eu posso pelo menos pedir uma última coisa? Só pra
eu ficar tranqüila?
— Ai, Jesus! O quê?
— Deixa eu dar um subidinha aí, rápido. Só pro senhor tirar a
temperatura dele uma última vez. Eu... Tá, nem precisa tirar a temperatura,
basta olhar pra ele.
— Rita!
— Tá, então eu nem subo. O senhor vê ele pela janela! Já estou
aqui com ele, na calçada. Estou levantando no colo, bem alto, pro senhor ver
melhor! Só uma olhadinha pela janela...
***
— Alô, dr. Felipe.
— Alôoorg... Rita, são quatro da madrugada. É a sétima vez que
você me liga hoje.
— Dessa vez é grave. O Dudu vomitou!
— Claro. Ele está com uma intoxicação. E eu já passei a medicação.
— Mas é que não tá normal... Tá assim com uns grânulos... e com
umas cascas... e uns pêlos... acho, inclusive, que tem uma mosca no meio.
— Rita, eu vou desligar.
— Dessa vez é diferente! Juro! A cor, sei lá... Sabe aqueles
catálogos de cortina? Pois é, não encontrei nenhuma cor que corresponda...
— Procura num catálogo de estofados que você encontra. Boa noite!
— Procura num catálogo de estofados que você encontra. Boa noite!
— Mas a aparência está horrível! O senhor tem que dar uma olhada!
— Acontece que eu estou de férias em Cancún! Você está me fazendo
uma ligação internacional! E eu não vou voltar pro Brasil pra ver as
"golfadas" do Dudu!
— Então... eu tiro uma fotografia das golfadas! Mando por Sedex.
— Não faça isso!
— Vou aproveitar e mandar uma foto minha, ampliada, pro senhor ver
como eu estou completamente acabada de preocupação. Alô, dr. Felipe? Ué...
desligou.
***
— Dr Felipe? É o senhor?
— Não, aqui é da Funilaria Alcântara. Foi engano. Passar bem.
— Não adianta me enganar! Reconheci sua voz.
— Fala, Rita...
— É sobre a meleca do Dudu. Ela está completamente verde e...
— Claro que está verde! Eu nunca vi meleca roxa! Nem azul! Sempre
foi verde! Antes de Cristo, ela já era verde. Os romanos, os egípcios... todos
tinham melecas verdes! Cleópatra tinha meleca verde!
— Acontece que não é só a questão da cor. É a quantidade. Pro
senhor ter uma idéia, eu já juntei um balde e dois tupper-wares só de
catarro.
— Um balde e dois tupper-wares??!
— Um balde e dois tupper-wares??!
— Guardei na geladeira pra poder mostrar pro senhor quando eu
conseguir marcar uma hora. Mas do jeito que está difícil, pra não estragar, vou
ter que congelar no freezer.
— Peraí, só pra ver se eu entendi. Você vai congelar o catarro do
seu filho... pra me mostrar?
— No dia da consulta eu boto no defrost, potência alta e
descongelo. A não ser que o senhor queira ver logo. Eu posso deixar
os tupper-wares na portaria do consultório.
— Não! De forma nenhuma! Os... os porteiros podem pensar que... é
meu almoço!
— Tá. Então eu vou deixar a fita cassete aí. Pelo menos isso.
— Fita cassete?! Que fita cassete?!
— Que eu gravei com a tosse do Dudu. Pro senhor ouvir. E gravei
ele falando 33. Se o senhor não se incomodar, vou mandar também a tosse da
minha mãe, que está uma coisa pavorosa — parece que ela engoliu um urso.
— Eu... tá... Manda a tosse de quem você quiser. Do seu pai, da
sua tia, de alguma vizinha. Grava em fita. Faz um vídeo. Um documentário. E já
que chegamos até aí... por que não um longa? Sobre catarro! O filme pode se
chamar "Matou a mãe do paciente e foi ao cinema". Que tal?
Nenhum comentário:
Postar um comentário