JOSÉ LINS DO REGO
PILAR-PB =
1901-1957
“Fôlego E Classe”
Muita
gente me pergunta: mas o que vai você fazer no futebol? Divertir-me, digo a
uns. Viver, digo a outros. E sofrer, diriam os meus correligionários flamengos.
Na verdade uma partida de futebol é mais alguma coisa que um bater de bola, que
uma disputa de pontapés. Os espanhóis fizeram de suas touradas espécie de
retrato psicológico de um povo. Ligaram-se com tanta alma, com tanto corpo aos
espetáculos selvagem que com eles explicam mais a Espanha que com livros e
livros de sociólogos. Os que falam de barbarismo em relação às matanças de
touros são os mesmos que falam de estupidez em relação a uma partida de
futebol. E então generalizam: é o momento da falta de espírito admirar-se o que
homens fazem com os pés. Ironizam os que vão passar duas horas vendo as
bicicletas de um Leônidas, as “tiradas” de um Domingos. Para esta gente tudo
isso não passa de uma degradação. No entanto há uma grandeza no futebol que
escapa aos requintados. Não é ele só o espetáculo que nos absorve, que nos
embriaga, que nos arrasa, muitas vezes, os nervos. Há na batalha dos vinte e
dois homens em campo uma verdadeira exibição da diversidade da natureza humana
submetida a um comando, ao desejo de vitória. Os que estão de fora gritando,
vociferando, uivando de ódio e de alegria, não percebem que os heróis estão
dando mais alguma coisa que pontapés, cargas de corpos; estão usando a cabeça,
o cérebro, a inteligência. Para que eles vençam se faz preciso um domínio
completo de todos os impulsos que o homem que é lobo seja menos lobo, que os
instintos devoradores se mantenham em mordaça. Um preto que mal sabe assinar a
súmula, que quase que não é gente, assume uma dignidade de mestre na posição
que defende, dominando os nervos e músculos com uma precisão assombrosa.
Vemo-lo correr de um lado para o outro, saber colocar-se com tal elegância,
agir com tamanha eficiência que nos arrebata.
Vi Fausto,
aquele que o povo chamava de “Maravilha Negra”, dentro de um campo, com trinta
mil pessoas, com os olhos em cima dele, vencendo adversários, distribuindo
“passes” com o domínio de um mágico. Era um rei no centro do gramado, dando-nos
a impressão que tudo corria para os seus pés e para a sua cabeça. Ouvi, outro
dia, torcedor, homem do povo, dizendo: “Ah! Como o finado Fausto não aparece
outro. Aquele comia a bola!”. Aí está bem a imagem verdadeira, a imagem que diz
tudo. Comer a bola. É como se a bola fosse só dele, uma comida de seus pés de
maravilha. O que havia em Fausto é o que há em Brailowsky; é a perfeição da
virtuosidade, é gênio do artista que venceu as dificuldades com mais alguma
coisa que o exercício. Fausto não era só o homem feito pelo treino, era o dono
de uma fabulosa força nativa. O que dá a Brailowsky a sabedoria não é o cuidado
com a sua preparação, é o seu poder de ser da música como um instrumento feito
de carne e nervos. Um Fausto não se faz, nasce, projeta-se como obra de Deus.
Domingos é
outro que é mestre desde os 19 anos de idade. Quando apareceu em Bangu vinha
para ser o maior de todos os tempos, uma natureza de homem frio que trabalha
como cirurgião. Não há na natureza dele o brilho, a cor. É um mestre do
claro-escuro. Domingos é dos que gostam de machucar os nervos das multidões. Às
vezes, ele brinca com fogo, arrasta o ser arco a perigos iminentes. E lento
como se quisesse matar os fãs do coração, ele faz as suas “tiradas” que são
verdadeiros golpes de vida ou morte. Domínio de nervos e de músculos que nos
deixa orgulhoso da espécie humana.
Mas, mais
do que os homens lutam no gramado, há o espetáculo dos que trepam nas
arquibancadas, dos que se apinham nas gerais, dos que se acomodam nas cadeiras
de pistas. Nunca vi tanta semelhança entre tanta gente. Todos os setenta mil
espectadores que enchem um “Fla-Flu” se parecem, sofrem as mesmas reações,
jogam os mesmos insultos, dão os mesmos gritos. Fico no meio de todos e os
sinto como irmãos, nas vitórias e nas derrotas. As conversas que escuto, as
brigas que assisto, os ditos, as graças, os doestos que largam são como se saíssem
de homens e mulheres da mesma classe. Neste sentido o futebol é como o
carnaval, um agente de confraternidade. Liga os homens no amor e no ódio. Faz
que eles gritem as mesmas palavras, e admirem e exaltem os mesmos heróis.
Quando me jogo numa arquibancada, nos apertões de um estádio cheio, ponho-me a
observar, a ver, a escutar. E vejo e escuto muita coisa viva, vejo e escuto o
povo em plena criação. Outro dia acabava de ler um artigo de Augusto Frederico
Schmidt sobre clássicos e modernos. Jogava o Flamengo com o Fluminense. Era uma
partida que os jornais chamavam de clássica. Então ouvi dois pretos na
conversa: “é o que lhe digo, esta história de futebol ensinando demais dá em
‘lero-lero’. No meu tempo futebol se jogava no campo. E a gente via um Candiota,
um Néri, um Mimi Sodré e fazia gosto. Agora não. O jogador entra em campo com o
jogo mandado. E dá nisso, neste ‘lero-lero’.”
Aí o outro
negro falou: “Qual nada. Isto é classe”. “Que classe, que coisa nenhuma. São
uns mascarados”, foi dizendo o primeiro. “De que serve a classe se eles não têm
fôlego?”
Ouviu-se
um grito tremendo de todo o estádio. Era Domingos que fazia uma tirada como um
toureiro que matasse um touro bravo.
“Este tem
classes”, disse o primeiro negro.
“É mas tem
fôlego também”, disse o segundo negro.
E aí
estava todo o problema que eu e o poeta Schmidt debatíamos: Fôlego e Classe.
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