FERNANDO SABINO
BELO HORIZONTE-MG, 1923-2004
Albertine Disparue
Chamava-se Albertina, mas era a própria Nega Fulô: pretinha, retorcida, encabulada. No primeiro dia me perguntou o que eu queria para o jantar:
— Qualquer coisa — respondi.
Lançou-me um olhar patético e
desencorajado. Resolvi dar-lhe algumas instruções: mostrei-lhe as coisas na
cozinha, dei-lhe dinheiro para
as compras, pedi que tomasse nota de tudo que gastasse.
— Você sabe escrever?
— Sei sim senhor — balbuciou
ela.
— Veja se tem um lápis aí na
gaveta.
— Não tem não senhor.
— Como não tem? Pus um lápis
aí agora mesmo!
Ela abaixou a cabeça, levou um
dedo à boca, ficou pensando.
— O que é lapisai? —
perguntou finalmente.
Resolvi que já era tarde para
esperar que ela fizesse o jantar. Comeria fora naquela noite.
— Amanhã você começa —
conclui. — Hoje não precisa fazer nada.
Então ela se trancou no quarto
e só apareceu no dia seguinte. No dia seguinte não havia água nem para lavar o
rosto.
— O homem lá da porta veio
aqui avisar que ia faltar — disse ela, olhando-me interrogativamente.
— Por que você não encheu a
banheira, as panelas, tudo isso aí?
— Era para encher?
— Era.
— Uê...
Não houve café, nem almoço e
nem jantar. Saí para comer qualquer coisa, depois de lavar-me com água mineral.
Antes chamei Albertina, ela veio lá de sua toca espreguiçando:
— Eu tava dormindo... — e deu
uma risadinha.
— Escute uma coisa, preste bem
atenção — preveni: — Eles abrem a água às sete da manhã, às sete e meia tornam
a fechar. Você fica atenta e aproveita para encher a banheira, enche tudo, para
não acontecer o que aconteceu hoje.
Ela me olhou espantada:
— O que aconteceu hoje?
Era mesmo de encher. Quando
cheguei já passava de meia-noite, ouvi barulho na área.
— É você, Albertina?
— É sim senhor...
— Por que você não vai dormir?
— Vou encher a banheira...
— A esta hora?!
— Quantas horas?
— Uma da manhã.
— Só? — espantou-se ela. –
Está custando a passar...
*
— O senhor quer que eu arrume
seu quarto?
— Quero.
— Tá.
Quarto arrumado, Albertina se
detém no meio da sala, vira o rosto para o outro lado, toda encabulada, quando
fala comigo:
— Posso varrer a sala?
— Pode.
— Tá.
Antes que ela vá buscar a
vassoura, chamo-a:
— Albertina!
Ela espera, assim de costas, o
dedo correndo devagar no friso da porta.
— Não seria melhor você
primeiro fazer café?
— Tá.
Depois era o telefone:
— Telefonou um moço aí dizendo
que é para o senhor ir num lugar aí buscar não sei o quê.
— Como é o nome?
— Um nome esquisito...
— Quando telefonarem você pede
o nome.
— Tá.
— Albertina!
— Senhor?
— Hoje vai haver almoço?
— Se for possível.
— Tá.
Fazia o almoço. No primeiro
dia lhe sugeri que fizesse pastéis, só para experimentar. Durante três dias só
comi pastéis.
— Se o senhor quiser que eu
pare eu paro.
— Faz outra coisa.
— Tá.
Fez empadas. Depois fez um
bolo. Depois fez um pudim. Depois fez um despacho na cozinha.
— Que bobagem é essa aí,
Albertina?
— Não é nada não senhor —
disse ela.
— Tá — disse eu.
E ela levou para seu quarto
umas coisas, papel queimado, uma vela, sei lá o quê. O telefone tocava.
— Atende aí, Albertina.
— É para o senhor.
— Pergunte o nome.
— Ó.
— O quê?
— Disse que chama Ó.
Era o Otto. Aproveitei-me e
lhe perguntei se não queria me convidar para jantar em sua casa.
*
Finalmente o dia da bebedeira.
Me apareceu bêbada feito um gambá; agarrando-me pelo braço:
— Doutor, doutor... A moça aí
da vizinha disse que eu tou beba, mas é mentira, eu não bebi nada... O senhor
não acredita nela não, tá cum ciúme de nóis!
Olhei para ela, estupefato.
Mal se sustinha sobre as pernas e começou a chorar.
— Vá para o seu quarto —
ordenei, esticando o braço dramaticamente. — Amanhã nós conversamos.
Ela nem fez caso. Senti-me
ridículo como um general de pijama, com aquela pretinha dependurada no meu
braço, a chorar.
— Me larga! — gritei,
empurrando-a. Tive logo em seguida de ampará-la para que não caísse: — Amanhã
você arruma suas coisas e vai embora.
— Deixa eu ficar... Não bebi
nada, juro!
Na cozinha havia duas garrafas
de cachaça vazias, três de cerveja. Eu lhe havia ordenado que nunca deixasse
faltar três garrafas de cerveja na geladeira. Ela me obedecia à risca: bebia as
três, comprava outras três.
Tranquei a porta da cozinha,
deixando-a nos seus domínios. Mais tarde soube que invadira os apartamentos
vizinhos fazendo cenas. No dia seguinte ajustamos as contas. Ela, já sóbria,
mal ousava me olhar.
— Deixa eu ficar — pediu
ainda, num sussurro. — Juro que não faço mais.
Tive pena:
— Não é por nada não, é que
não vou precisar mais de empregada, vou viajar, passar muito tempo fora.
Ela ergueu os olhos:
— Nenhuma empregada?
— Nenhuma.
— Então tá.
Agarrou sua trouxa,
despediu-se e foi-se embora.
Texto extraído do livro "O Homem Nu", José Olympio Editora - Rio de Janeiro,1973, pág. 176.
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