FERNANDO SABINO
BELO HORIZONTE-MG =
1923-2004
Mulher De Matar
Olhou distraidamente para o relógio e deu um pulo na cadeira: Ih, cacilda, quatro e meia da manhã! Mais um pouco e encontraria a mulher acordada.
Enquanto a
noite durasse, nada a temer. Mas não podia se deixar se apanhar na rua quando a
claridade do céu começava a anunciar o novo dia. A partir de então a mulher
acordava a qualquer barulhinho. Houve um dia, por exemplo, em que mal havia
tirado a roupa, ouviu a voz dela lá na cama, você vai sair a esta hora? Não
teve remédio senão dizer que sim , tinha de estar bem cedo no escritório.
E tornou a sair, foi mesmo para o escritório, dormir no sofá da sala de espera
o restinho da manhã.
-- Gente,
eu tenho de me mandar.
Chamou o
garçom, pagou sua conta, despediu-se dos amigos que, já bêbados, nem deram por
sua partida. Meio bebido, ele próprio, na rua firmou-se sobre as pernas e fez
sinal para um táxi que passava.
Alguém
mais se adiantou e acenou para o mesmo táxi. Era uma mulher que também acabava de
sair da boate.
Pronto,
pensou rápido: se perco este táxi, lá vai minha última chance de chegar ainda
de noite.
Quando o
táxi parou, fingiu que não via a mulher e avançou para abrir a porta. Ela
também avançou, tocou-lhe o braço:
-- Por
favor, estou com pressa!
A voz,
aflita, era educada e insinuante. Então ele reparou que era uma mulher bonita.
Ainda assim resistiu: pediu-lhe também de maneira educada que o desculpasse,
mas sua pressa era maior. A menos que seguissem juntos no táxi, e ele a
deixaria no caminho, se é que iam para o mesmo lado. Vacilaram ambos:
-- Se não
se incomoda...
--
Incômodo nenhum.
-- Bem,
nesse caso...
Estavam
nisso quando surgiu um grandalhão, de terno xadrez e segurou a mulher pelo
braço. Ignorou a presença dele e falou com a voz carregada:
-- Eu
agorra te matarr.
Notou que
o homem tinha à ilharga algo avolumado sob o paletó, só podia ser revolver. E a
manopla já avançando para sacá-lo.
-- Não
faça isso! -- gritou, com a mão espalmada no ar, como um guarda de trânsito: --
O senhor não pode fazer uma coisa dessas!
-- O homem
se voltou, como se o visse só então:
-- Não
poderr porr quê? Quem é senhorr?
Agora era
distrair o gringo e tomar o táxi:
-- Tenho
mulher e filhos em casa me esperando, e o senhor quer me envolver num crime?
-- Sernhor
não saberr que esta mulherr fazerr comigo.
-- Seja o
que for, não vá matá-la, pelo menos na minha vista.
Mesmo que
fosse embora, estaria envolvido: o chofer do táxi seria testemunha. E a mulher
não tinha a menor reação, ia morrer sem um pio. O jeito era ficar:
-- Do you
speak English?
-- Eu serr
alemon.
-- Neste
caso vai em português mesmo. Vamos tomar um drinque.
Dispensou
o táxi e conduziu ambos pelo braço de volta à boate.
Era dia
claro quando se viu noutro táxi, em companhia da mulher e do alemão,
reconciliados graças à sua intervenção. A idéia era deixá-la primeiro, para
evitar que o homem, sozinho com ela, tivesse novo ímpeto homicida.
Quando ela
saltou, o alemão quis descer também, foi um custo contê-lo:
-- Você
prometeu, Fritz.
Ela se
foi, sã e salva, e os dois seguiram viagem. Ele convidou o alemão para tomar o
café da manhã em sua casa -- única maneira de sua mulher acreditar naquela
história:
-- Quero
que você conheça minha mulher. Esta sim, é de matar.
Texto extraído do livro "O Gato sou Eu", Editora Record - Rio de Janeiro, 1983, pág.45.
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