JOSÉ
SARAMAGO
PORTUGAL =
1922-2010
Somos
Irracionais
No meu tempo de escola
primária, algumas crédulas e ingénuas pessoas, a quem dávamos o respeitoso nome
de mestres, ensinaram-me que o homem, além de ser um animal racional, era,
também, por graça particular de Deus, o único que de tal fortuna se podia
gabar. Ora, sendo as primeiras lições aquelas que mais perduram no nosso
espírito, ainda que, muitas vezes, ao longo da vida, julguemos tê-las
esquecido, vivi durante muitos anos aferrado à crença de que, apesar de umas
tantas contrariedades e contradições, esta espécie de que faço parte usava a
cabeça como aposento e escritório da razão. Certo era que o pintor Goya, surdo
e sábio, me protestava que é no sono dela que se engendram os monstros, mas eu
argumentava que, não podendo ser negado o surgimento dessas avantesmas, tal só
acontecia quando a razão, pobrezinha, cansada da obrigação de ser razonável, se
deixava vencer pela fadiga e mergulhava no esquecimento de si própria. Chegado
agora a estes dias, os meus e os do mundo, vejo-me diante de duas
probabilidades: ou a razão, no homem, não faz senão dormir e engendrar
monstros, ou o homem, sendo indubitavelmente um animal entre os animais, é,
também indubitavelmente, o mais irracional de todos eles. Vou-me inclinando
cada vez mais para a segunda hipótese, não por ser eu morbidamente propenso a
filosofias pessimistas, mas porque o espectáculo do mundo é, em minha fraca
opinião, e de todos os pontos de vista, uma demonstração explícita e evidente
do que chamo a irracionalidade humana. Vemos o abismo, está aí diante dos
olhos, e contudo avançamos para ele como uma multidão de «lemmings» suicidas,
com a capital diferença de que, de caminho, nos vamos entretendo a trucidar-nos
uns aos outros.
José Saramago, in 'Cadernos de Lanzarote (1993)
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