BELO
HORIZONTE-MG = 1923-2004
Vinho De Missa
Era domingo e o
navio prosseguia viagem. Os passageiros iam sendo convocados para a missa de
bordo.
- Vamos à missa?
convidou Ovalle.
O passageiro a
seu lado no convés recusou-se com inesperada veemência:
- Missa, eu?
Deus me livre de missa.
- Não entendo –
tornou Ovalle, intrigado:
- O senhor pede
justamente a Deus que o livre da missa?
- No meu tempo
de menino eu ia à missa. Mas deixei de ir por causa de um episódio no colégio
interno, há mais de trinta anos. Colégio de padre – isso explica tudo, o senhor
não acha?
Ele achou que
não explicava nada e pediu ao homem que contasse.
- Pois olha, vou
lhe contar: imagine o senhor que havia no colégio um barbeiro, para fazer a
barba dos padres e o cabelo dos alunos. Vai um dia o barbeiro me seduz com a
idéia de furtar o vinho de missa, que era guardado numa adega. Me ensinou um
jeito de entrar na adega – e um dia eu fiz uma incursão ao tonel de vinho. Mas
fui infeliz: deixei a torneira pingando, descobriram a travessura e no dia
seguinte o padre-diretor reunia todos os alunos do colégio, intimando o culpado
a se denunciar. Ia haver comunhão geral e quem comungasse com tão horrenda
culpa mereceria danação eterna. Está visto que não me denunciei: busquei um
confessor, tendo o cuidado de escolher um padre que gozava entre nós da fama de
ser mais camarada: “Padre, como é que eu saio desta? Eu pequei, fui eu que bebi
o vinho. Mas se deixar de comungar, o padre-diretor descobre tudo, vou ser
castigado.” Ele então me tranqüilizou, invocando o segredo confessional, me
absolveu e pude receber a comunhão. Pois muito bem: no mesmo dia todo mundo
sabia que tinha sido eu e eu era suspenso do colégio. O homem respirou fundo e
acrescentou, irritado:
- Como é que o
senhor quer que eu ainda tenha fé nessa espécie de gente?
Ovalle ouvia
calado, os olhos perdidos na amplidão do mar. Sem se voltar para o outro,
comentou:
- O senhor,
certamente, achou que o confessor saiu dali e foi direitinho contar ao diretor.
- Isso mesmo.
Foi o que aconteceu.
- O vinho era
bom?
- Como?
- Pergunto se o
senhor achou o vinho bom.
O homem sorriu,
intrigado:
- Creio que sim.
Tanto tempo, não me lembro mais… Mas devia ser: vinho de missa!
Então Ovalle se
voltou para o homem, ergueu o punho com veemência:
- E o senhor,
depois de beber o seu bom vinho de missa, me passa trinta anos acreditando
nessa asneira? O homem o olhava, boquiaberto:
- Asneira? Que
asneira?
- Será possível
que ainda não percebeu? Foi o barbeiro, idiota!
- O barbeiro? –
balbuciou o outro:
- É verdade… O
barbeiro! Como é que na época não me ocorreu…
– Vamos para a
missa – ordenou Ovalle, tomando-o pelo braço.
Nenhum comentário:
Postar um comentário