VINICIUS DE MORAES
RIO DE JANEIRO-RJ =
1913-1980
A Alegre Década De 20
Suponhamos, leitor, que você acorde um dia quatro décadas atrás, no
período entre 1920 e 1930 que sucedeu à Primeira Grande Guerra e onde a
disponibilidade e falta de critério eram gerais: os "Gay Twenties",
como ficou conhecida nos Estados Unidos a era do jazz, tão fabulosamente vivida
e narrada pelo romancista Scott Fitzgerald.
Suponhamos que você tivesse uma amiga, ou melhor, uma
"amiguinha" rica e quisesse fazer um programa com ela. Iria
encontrá-la em casa metida num peignoir de cetim ciré, sandálias de pompom,
piteira em riste a queimar um Abdoula, envolta em ondas de Mitsoukou ou Tabac
Blond, do perfumista Caron. Ela estaria, naturalmente, num divã coberto de
almofadas, e na testa da jovem "melindrosa", você notaria um
"pega-rapaz", ou antes, uma "belezinha", feita com uns
poucos fios de cabelo. Você ficaria, leitor amigo, como é natural, entre
surpreso e encantado, sobretudo quando notasse que, ao sorrir, a sua diva
mordia a pontinha da língua num tique faceiro. E mais encantado ainda quando,
ao pedir um uísque, visse a empregada voltar com um coquetel rose, delicada
beberagem à tona da qual estaria boiando, qual leve batel, uma pétala de
rosa... Depois de tomar uns oitenta desses, você ouviria a sua amiguinha
adverti-lo contra os perigos de uma "carraspana". Mas qual! Estando
habituado ao uísque falsificado da maioria das nossas boates e bares, você nem
estaria sentindo o anunciado "pifão". Pelo contrário. Animadíssimo,
colocaria uma "chapa" no gramofone e tiraria sua amiguinha para
dançar um ragtime. Em seguida, mirando ao espelho a sua elegância - calça
estreita de flanela, paletó azul-marinho cintado, camisa listada, gravata
borboleta, sapato camouflage e chapéu de palhinha você, com uma graciosa
pirueta de satisfação, convidaria sua amiguinha para uma saída: - Vamos ao chá
dançante do Palace Hotel?
E ela, com um muxoxo: - Não, hoje eu preferia muito ir ver o
Bataclan. Dizern que é "supimpa". Dado a coisas mais finas que o vaudeville
ou o teatro de revista, você ainda tentaria convencer o seu "pedaço de mau
caminho" a ir, em vez, à festa do Fluminense ouvir os Corsarinos e sua
jazz band: um negócio do "balacobaco". Mas a menina não estava nada
para coisas muito formais. Em vista do quê, você, leitor, estirando-se numa
otomana, à luz do abajur cor bleu (como bem caraterizava o fox-trot
Hindustão") você pegaria com um gesto displicente os poemas de Hermes
Fontes, ou o La Garçonne de Victor Margueritte - e perdido entre bibelôs, esperaria
que sua amiguinha se arrumasse "com uma rapidez de Fregoli”, conforme
anunciara, referindo-se ao famoso transformista. Mas essa arrumação tomaria
tempo. Primeiro, desfazer os papelotes e desbastar a gaforinha - coisa que
levava usualmente uma meia hora. Depois, enfiar as meias fumées, os sapatos
mordorés, o chapéu canotier e passar no pescoço o renard argenté (uma magra
raposinha a morder o próprio rabo). Só então a sua linda vigarista, depois de
um último retoque ao espelho da entrada, iria à vida com você para diverti-lo
um pouco à custa de uns magros "caraminguás". De volta ao tempo
presente, leitor, você acharia que não era má a idéia de uma saída para ir ao
36 ver o Caymmi, ou ao Sacha's para gozar do refrigerado. Aí você passaria a
mão no telefone, discaria um número, e quando a voz feminina lhe respondesse do
outro lado você diria assim: - Como é, ó vigarista? Mete aí um bom pano em cima
de ti e vamos enfrentar um escurinho musicado. Não, nada de botar banca pra
cima de mim. Eu te manjo. É isso mesmo. Vamos lá tirar a ficha da moçada. A
gaita anda curta para o scotch mas dá para molhar a garganta com uma
“loura". Menina, hoje estou enxugando o fino! O couvert já está
conversado. Você sabe que o papai mora no assunto. Taca peito.*
* O A. se julga no dever de advertir, com relação à gíria empregada no último parágrafo, que esta crônica data de 1953.
* O A. se julga no dever de advertir, com relação à gíria empregada no último parágrafo, que esta crônica data de 1953.
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