CARLOS DRUMMOND
DE ANDRADE
ITABIRA-MG
= 1902=1987
O Jardim Em Frente
Os big shots da empresa estavam reunidos
em conferência. Assunto importante, desses que exigem atenção, objetividade. O
presidente recomendara:
- Não estamos para ninguém. Esta porta
fica trancada. Avisem à telefonista que não atenda nenhum chamado. Nem do Papa.
Começou-se por dividir o assunto em
partes, como quem divide um leitão. Cada parte era examinada pelo direito e
pelo avesso, avaliada, esquadrinhada, radiografada. Cartesianamente.
- Você aí, quer fazer o favor de parar
com essa caricatura?- O presidente não admitia alienação. Por sua vez, foi
advertido pelo vice:
- E você, meu caro, podia deixar de bater
com esse lápis, toc, toc, toc, na mesa?
Estavam tensos, à véspera de uma decisão
que envolveria grandes interesses. Alguém bateu à porta.
- Não respeitam! Não respeitam o trabalho
da gente! Isso não é país!
- Seja ou não seja país, quando batem à
porta a solução é abrir, para evitar novas batidas, ou, mesmo, que a porta
venha abaixo. Pois ninguém deixa de bater, e sabe que tem gente do outro lado.
O director secretário abriu, de óculos
fuzilantes. O chefe da portaria, cheio de dedos, balbuciou:
- Essa senhora... essa senhora aí. Veio
pedir uma coisa.
O primeiro impulso do diretor secretário
foi demitir imediatamente o chefe da portaria, servidor antigo,
conceituadíssimo, mas viu ao mesmo diante de si a imagem consternada do homem,
e a lei trabalhista: duas razões de clemência. Pensou ainda em mandar a senhora
àquele lugar de Roberto Carlos, ou a outro pior. Dominou-se: ela ostentava no
rosto aquela marca de tristeza, que amolece até directoria.
- A senhora me desculpe, mas estou tão
ocupado.
- Eu sei, eu é que peço desculpas. Estou
perturbando, mas não tinha outro jeito. Moro do outro lado da rua, no edifício
em frente. Meu canário...
- Fugiu e entrou aqui no escritório? Eu
mando pegar. Fique tranquila.
- Antes tivesse fugido. Morreu.
- E daí?
- Viveu quinze anos connosco. Era uma
graça... pousava no dedo...
- E daí, minha senhora?
- O senhor vai estranhar meu pedido? Eu
estava sem coragem de vir aqui. Por favor, não ria de mim.
- Não estou rindo. Pode falar.
- Os senhores tem um jardim tão lindo na cobertura.
Da minha janela,
fico
apreciando. Então agora está uma coisa:
posso fazer um pedido?
- Pode.
- Eu queria enterrar meu canário no seu
jardim. Lá é que é lugar bom para ele descansar. O senhor vê, nós temos aquele
terrenão ao lado do edifício, com três palmeiras, um pé de fruta-pão, mas é
grande demais para um passarinho, falta intimidade. Se o senhor consente, eu
mesma abro a covinha. Não dou o menor trabalho, não sujo nada.
O director secretário esqueceu que tinha
pressa, que havia um problema sério a discutir. Que problema? Naquele momento,
o importante, o real era um canarinho morto, e amado.
- Pois não, minha senhora, disponha do
jardim. Eu mesmo vou levar a senhora lá em cima, para escolher o lugar.
Subiram, escolheram o canteiro mais
apropriado, onde bate o sol pela manhã, e à tarde as plantas balançam
levemente, à brisa do mar.
- Não é abuso eu fazer mais um pedido?
Queria que o jardineiro não revolvesse a terra neste ponto, durante três meses.
O tempo de os ossinhos dele se desfazerem... Volto daqui há meia hora para o
enterro.
Meia hora depois, voltava com uma
caixinha forrada de veludo azul claro, e a reunião dos big shots, que ainda
durava, foi suspensa para que todos, com o presidente muito compenetrado,
assistissem ao sepultamento.
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