HUMBERTO DE CAMPOS
MIRITIBA-MA = 1886 – 1934
Barba De Bode
Foi recolhida,
segunda-feira última, no Hospício Nacional, vítima de uma erva erroneamente
receitada por um herbanário dos subúrbios, a encantadora senhorita Carmélia
Passos, filha única e inteligentíssima da viúva Carlota Passos, proprietária
nesta capital.
Eu desconhecia
ainda este caso, e já aplaudia com todo o meu coração a atitude da Saúde
Pública, perseguindo, punindo, combatendo com as armas da lei a praga dos
curandeiros. E aplaudia-a com a lembrança, apenas, de um episódio doloroso, que
me fora narrado, semanas antes, pelo meu prestimoso amigo o Sr. senador Elói de
Souza.
O coronel
Raimundo de Araújo, comerciante em Natal, capital do Rio Grande do Norte, havia
entrado na casa dos sessenta anos quando, após quatorze de viuvez, entendeu de
contrair novas núpcias com uma sólida moçoila de São Gonçalo. Pedida, porém, a
rapariga, começaram as complicações, as dificuldades, os obstáculos e, com
eles, o adiamento da cerimônia. Homem de idade avançada, sujeito, portanto, ao
efeito das emoções violentas, o coronel, assim que ficou noivo, começou a
declinar de forças, de coragem, de saúde, e de tal forma que, após um mês de
noivado, parecia haver envelhecido dez anos. Aflito, impressionado, combalido,
o abastado comerciante recorreu, e sempre inutilmente, a todos os médicos da
cidade. E já estava quase desiludido da cura e da vida, quando um seu compadre,
o capitão Ferreira, tabelião aposentado, a quem participara a sua infelicidade,
lhe perguntou, interessado:
- O compadre
já usou chá de barba de bode?
- Barba de
bode? - indagou o outro, espantado.
- Sim. Pega-se
todo o dia um punhado de barba de bode, faz-se um chá bem forte, e toma-se três
vezes por dia.
E acentuou,
sincero:
- É um santo
remédio, compadre!
Animado com a
nova esperança; o coronel Araújo mandou chamar à sua casa de negócio um caboclo
de Currais Novos, o Antônio Severo, grande criador de caprinos naquela parte do
sertão, e, sem lhe dizer para que era a encomenda, pediu que lhe mandasse na
primeira oportunidade, e a qualquer preço, um saco com barbas de bode.
- Que
quantidade, coronéo? - indagou o sertanejo.
- Uns dez
quilos.
Duas semanas
depois recebia o coronel Araújo a sua encomenda, entrando, de pronto, no uso da
medicina receitada. À medida, porém, que tomava o chá, sentia efeitos
exatamente opostos àquele que esperava: uma vontade doida de chorar, de berrar,
de bodejar lamentosamente, e, sobretudo, um desejo irresistível de fugir às
mulheres. No fim de um mês, a situação do enfermo era, mesmo, desesperadora:
magro, nervoso, espumando pelo canto da boca, passava as noites na rua,
encostando-se às paredes, às arvores, às pedras das estradas, nas proximidades
do porto, do mercado e do quartel, e em estado tal de desmoralização que os
amigos, penalizados com a sua infelicidade, tiveram de mandá-lo internar, com
recomendações especiais do Dr. Ferreira Chaves, então governador do Estado, em
uma casa de saúde de Pernambuco!
Esse desfecho
de uma vida honrada e laboriosa impressionou, como era natural, o meio em que
vivia o conhecido negociante. Quem, entretanto, mais pensava naquele infortúnio
era o seu compadre Ferreira, autor da receita. Preocupado com o caso, e sem
encontrar para ele uma explicação aceitável, ia o velho tabelião um dia pela
praça do mercado quando sentiu, de repente, uma pancada no ombro. Era o Antônio
Severo, de Currais Novos, que havia chegado naquele dia com uma partida de
couros. A figura do sertanejo avivou-lhe, naquele momento, uma lembrança; e
como esta fosse teimosa, forte, renitente, o velho Ferreira não se conteve, e
indagou:
- Diga-me uma
coisa, Severo: o coronel Araújo não lhe fez, quando você esteve aqui da última
vez, uma encomenda de barba de bode?
- Fez, sim,
senhor; e eu mandei, logo que cheguei lá.
- E você tem
certeza de que era, mesmo, barba de bode?
Ante essa
insistência, o matuto sorriu, cuspiu longe, por entre os dentes, e, com a sua
vozinha de ingênuo e de esperto, confessou:
- Home,
"seu" capitão, garantir eu não garanto. O coronéo me encomendou, é
verdade, dez quilos de barba de bode. Mas porém, onde eu ia achar bode p'ra
tanta barba? E como pensei que desse tudo na mesma coisa, mandei mesmo de
cabra!
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