RÚSSIA = 1860 - 1904
O Vingador
Logo depois de haver surpreendido sua mulher em
flagrante, encontrava-se Fedor Fedorovich Sigaev na loja de armas de Schmuks e
Cia, a escolher o revolver que melhor lhe pudesse servir. Seu rosto expressava
ira, dor e decisão irrevogável.
“Bem sei o que devo fazer!”, pensava. “Quando os
fundamentos de uma família são profanados, e a honra é arrastada pela lama e
triunfa o vício… eu, como cidadão e como homem honrado, devo ser o vingador.
Matarei primeiro a ela, depois ao amante e finalmente suicidar-me-ei”.
Não havia ainda escolhido o revolver e nem sequer
assassinara alguém, mas na imaginação já se lhe apresentavam três cadáveres
ensangüentados, de crânios triturados, os miolos a flutuarem… Barulho, ruído de
curiosos e autópsia.
Possuído pela insensata alegria do homem ofendido,
calculava o horror dos parentes e do público, a agonia da traidora e até lhe
parecia poder ler em pensamento os artigos da primeira página, a comentarem a
decomposição dos fundamentos da família.
O empregado da loja, tipo inquieto, afrancesado, de
ventre pequeno e colete branco, apresentava-lhe os revólveres e juntando os
calcanhares dizia, sorrindo respeitosamente:
- Eu aconselharia a Monsieur que levasse este
magnífico modelo do sistema Smith & Wesson. É a última palavra na ciência
das armas. Possui três propulsores e pode-se dispará-lo a uma distância de
seiscentos passos. Chamo também a atenção de Monsieur para a limpeza do
acabamento. Seu sistema é que está mais em moda. Vendemos diariamente dezenas
deles, que são utilizados contra os bandidos, os lobos e os amantes. Seu tiro é
preciso e forte, alcança distâncias enormes e mata, atravessando-os, a mulher e
o amante. Quanto aos suicidas, Monsieur, não conheço, para eles, melhor
sistema.
E o empregado, apertando e soltando o gatinho,
soprando o cano e fingindo mirar, parecia próximo a afogar-se de puro
entusiasmo. A julgar-se pela expressão extasiada de seu rosto, poder-se-ia
pensar que ele mesmo, de boa vontade, pregaria um tiro na testa, se possuísse
uma arma tão maravilhosa quanto aquela.
- E qual o preço? – perguntou Sigaev.
- Quarenta e cinco rublos, Monsieur.
- Hum! É muito caro, para mim.
- Neste caso, Monsieur, posso oferecer-lhe algo
mais em conta. Aqui está. Tenha a bondade de examinar. Temos estoque variado e
de todos os preços… Este, por exemplo, do sistema Lefrauché, que custa somente
18 rublos. Porém… – o empregado fez um muxoxo de pouco caso – é um sistema, Monsieur,
demasiadamente antiquado. Quem o compra são os pobres de espírito e os
psicopatas. Suicidar-se ou matar a própria mulher com um Lefauché é considerado
atualmente de mau gosto. O bom-tom admite somente uma Smith & Wesson.
- Não necessito matar-me ou a alguém – mentiu, com
acento sombrio, Sigaev. – Compro-o simplesmente para a minha casa de campo…
Para assustar os ladrões.
- Não nos interessa o seu motivo – sorriu o empregado,
baixando modestamente os olhos – Se, em cada caso, buscássemos as razões, já
deveríamos ter fechado a loja.
Para espantar os corvos, Monsieur, o Lefauché não
serve, pois produz ruído um tanto surdo. Eu lhe proponho uma pistola Mortimer,
das chamadas para duelos.
“E se eu o provocasse para um duelo?”, passou pela
cabeça de Sigaev. “Porém… não… Seria honra demasiada. A essas bestas, devemos
matá-las, como cachorros…”
O empregado, revoluteando graciosamente e em
pequenos passos, sem deixar de sorrir e de conversar, apresentou-lhe todo o
monte de revólveres. O Smith & Wesson era o de aspecto mais sólido e
justiceiro. Sigaev tomou um destes nas mãos, fixou-o e quedou ensimesmado. A
imaginação desenhava-o destroçando um crânio, o sangue a escorrer como um rio
sobre o tapete e o assoalho, a traidora, moribunda, agitando um pé convulso…
Para a alma indignada, aquilo era pouco. O quadro de sangue, os soluços e o
estupor não o satisfaziam. Deveria pensar em algo mais terrível.
“Isto é o que farei”, pensou. “Matarei a ele e a
mim em seguida, porém ela… deixaria viver. Que morra do arrependimento e do
desprezo dos que a cercam! Para natureza tão nervosa quanto a sua, será
martírio maior que a morte!”
Começou a imaginar o próprio funeral: ele, o
ofendido, estendido no ataúde, com um sorriso bondoso nos lábios… Ela, pálida,
torturada pelos remorsos, caminhando atrás do féretro, como uma Níobe, sem
poder escapa aos olhares depreciativos e aniquiladores, lançados pela multidão
indignada…
- Vejo, Monsieur, que lhe agrada o Smith &
Wesson – comentou o empregado, interrompendo o devaneio – Se o acha muito caro,
posso fazer uma redução de cinco rublos, embora tenhamos outros mais baratos.
A figurinha afrancesada girou graciosamente sobre
os próprios tacões e alcançou na prateleira outra dúzia de estojos com
revólveres.
- Aqui está outro, Monsieur. O preço, trinta
rublos. Não é caro, se lembrarmos que o câmbio está baixo e que os direitos
alfandegários sobem cada dia mais… Juro-lhe, Monsieur, que sou conservador,
porém já começo a protestar! Imagine que o câmbio e a tarifa da alfândega são o
motivo de que somente os ricos possam adquirir armas!
Para os pobres nada mais resta que as armas de
Tula, e os fósforos. E as armas de Tula são uma desgraça! Se alguém pretender
disparar uma arma de Tula sobre a própria mulher, apenas consegue atingir a
própria omoplata…
Repentinamente Sigaev entristeceu-se com a idéia de
morrer e não contemplar os sofrimentos da traidora. A vingança unicamente é
doce quando existe a possibilidade de ver e tocar seus frutos. Pois, que
sentido encontraria em estar deitado no ataúde, se nada poderia perceber?!
“E se eu fizesse isto?… matá-lo, ir a seu enterro,
ver tudo e depois me suicidar?… Sim. Porém… antes do enterro eu seria preso e
me tirariam a arma… Bem…
O que farei será matá-lo e deixar que ela viva. Eu…
enquanto não decorra um certo tempo, não me matarei. Serei preso. Para
suicidar-me, sempre terei ocasião. Estar preso será melhor, pois que ao prestar
declarações, terei possibilidade de demonstrar, ante o poder e a sociedade,
toda a baixeza do seu comportamento. Se eu morresse, ela, com seu caráter
desavergonhado e embusteiro, jogaria a culpa sobre mim, e a sociedade acabaria
por absolvê-la…. de outro lado, talvez caçoe de mim, se continuo a viver… Então….
Um minuto depois, pensava:
“Se… Talvez me acusem de sentimentos mesquinhos se
eu me matar… E, depois, para que suicidar-me? Isso em primeiro lugar. Em
segundo… o suicídio é covardia.
Então, o que farei será matá-lo, deixá-la viver e
eu irei para o cárcere. Serei julgado e ela figurará como testemunha… Veremos
seu sobressalto e vergonha, quando precisar enfrentar meu advogado! Por certo
que as simpatias do tribunal, do público e da imprensa estarão ao meu lado!…”
Enquanto assim devaneava, o empregado continuava a
expor a mercadoria e considerava de seu dever, entreter o comprador.
- Veja aqui, outros, ingleses, de sistema novo, que
recebemos há pouco. Porém, previno-o, Monsieur, de que todos os sistemas
empalidecem diante do Smith & Wesson.
Por certo, terá lido, há poucos dias, acerca de um
militar que comprara um Smith & Wesson em nossa casa, e que o usou contra o
amante… E que imagina tenha acontecido? A bala atravessou primeiro o amante,
alcançou, depois o abajur de bronze, em seguida o piano de cauda e deste, como
uma carambola, matou um cachorro pequinês e roçou a esposa… As conseqüências
foram brilhantes e honraram nossa firma. O militar está preso agora… Por certo
o condenarão a trabalhos forçados!… Em primeiro lugar, porque temos leis muito
antiquadas, em segundo, porque já se sabe que o tribunal sempre toma o partido
do amante. Por quê? Muito simples, Monsieur. Porque também o jurado, os juízes,
o procurador e o advogado de defesa se entendem com esposas alheias e mais tranqüilos estão quando sabem de que um
marido há na Rússia. A sociedade se encantaria, caso o Governo desterrasse
todos os maridos para a ilha de Sajalin. Ah! Mousieur! Não pode o senhor
imaginar a indignação que me desperta este desmoronar dos costumes morais
contemporâneos!… Nestes tempos, cortejar mulheres alheias causa tanto prazer
quanto filar cigarros dos outros ou pedir livros emprestados! Cada ano que
passa, o nosso comércio declina, porém não significa que haja menos amantes…
Significa que os maridos reconciliam-se com a situação e temem os trabalhos
forçados – e o empregado, olhando em torno de si, sussurrou: – E quem é o
responsável, Monsieur? O Governo!
“Acabar em Sajalin, por causa de um porco… não, não
é razoável”, refletiu Sigaev. “Se me condenam aos trabalhos forçados, somente
conseguirei dar à minha mulher a possibilidade de casar-se outra vez e de
enganar também ao segundo marido. O lucro será todo dela! O que farei então
será isto: deixá-la viver, não me matar e nem matar a ele… Devo imaginar algo
mais prudente e sentimental. Castigá-los-ei com meu desprezo e encetarei
escandaloso processo de divórcio…”
- Aqui está, Monsieur, um sistema novo – comentou o
empregado, recolhendo de outra prateleira mais uma dúzia de revólveres. –
Chamou-lhe a atenção para o mecanismo original do cão…
Porém, uma vez tomada aquela decisão, Sigaev não
mais necessitava de revólver. Em compensação, o empregado, cada vez mais
inspirado, não cessava de mostrar-lhe os artigos que tanto elogiava. O marido
ofendido envergonhou-se de que, por sua causa, o sujeito estava trabalhando em
vão, a entusiasmar-se e a perder tempo.
-Bem – balbuciou. – Será melhor que eu volte mais
tarde ou mande alguém…
Conquanto não visse a expressão do rosto do
empregado, compreendeu que, para suavizar a violência da situação, não havia
outra saída que comprar algo. Porém, o que? Seus olhos percorreram as paredes
da loja, em busca de uma coisa barata, e se detiveram numa rede de cor verde,
pendurada junto à porta.
- E isso? Que é isso? – perguntou.
- É uma rede para caçar codornas.
- Qual o preço?
- Oito rublos.
- Pois pode mandar embrulhar.
O marido ofendido pagou os oito rublos, passou a
mão na rede para levá-la e, cada vez mais ofendido, saiu da loja.
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